domingo, 8 de julho de 2012

Seis quase histórias em seis canções

I - Lise


"Que veux-tu que je lui dise
Elle fait tout de travers
Elle fonctionne à l'envers
Sous ses airs de marquise


Les vers de Lise
Se lisent autour d'un verre"

Esteve chovendo a noite toda, e em algum lugar de sua mente a chuva continua caindo, fraca porém incessante. 
Ela escreve versos, mas nunca os mostra a ninguém. Não são versos para serem lidos em saraus, lugares refinados ou qualquer lugar onde elites supostamente intelectuais se reúnam, vestindo suas roupas elegantes e sustentando seus olhares blasés. Seus versos combinam com a mesa de um boteco sujo, onde pessoas de vida desregrada se encontram, todos levemente desesperançosos, lamentando sua má sorte e os preços das bebidas.
Ainda assim, dizem que ela parece uma princesa, ou uma marquesa, ou o membro de qualquer família imperial. Ela não entende o que querem dizer, então responde a isso com um leve sorriso de aceitação.

II - Rattlesnakes

"She looks like Eve Marie Saint
In on the waterfront, she says
All she needs is therapy
All you need is love, is all you need"

O papel é mais paciente do que as pessoas, então ela escreve. Escreve noite afora, enquanto vê as luzes do prédio à frente se apagando aos poucos. As pessoas vão dormir, mas ela não tem sono. Escrever é um descanso melhor. Talvez devesse conversar com alguém, mas não há com quem conversar.
O papel é paciente, mas não costuma dar conselhos, então ela vai à terapia e tenta se convencer de que é o melhor que pode fazer.
Porém, nas noites em que o papel não chama, faz frio e todas as luzes dos outros apartamentos já se apagaram, ela pensa que poderia trocar as sessões de terapia e os remédios por alguém pra abraçar.
Infelizmente, não se pode ter tudo.

III- All nightmare long


"Cause we...
Hunt you down without mercy
Hunt you down all nightmare long"

Os braços da mulher foram arrancados, ela não tem chance nenhuma de se defender. É violentada com brutalidade, depois suas pernas são amputadas e colocadas dentro de um forno, e então a mulher é forçada a provar a própria carne antes de ser colocada ainda viva para assar.
***
Ela acorda assustada, mas não é o pesadelo que a assombra. Ela pensa em como seu inconsciente pode ter criado tal cena, e em que tipo de demônios internos deve carregar para que isso seja possível. 

IV - Enjoy the silence

"Words like violence
Break the silence
Come crashing in
Into my little world
Painful to me
Pierce right through me
Can't you understand
Oh my little girl"

Ela não tem tudo o que sempre quis em seus braços, e está muito longe de conseguir isso. Porém, é preciso que se tenha algo de precioso para que se levante todas as manhãs, e a liberdade é seu maior tesouro. Valoriza a liberdade de expressão, sim, mas mais do que isso, quer sua liberdade de simplesmente ficar em silêncio. Em sua mente, parece estranho ter de lutar pelo direito de calar, mas já deveria estar acostumada à estranheza do mundo. O mundo é mesmo um lugar hostil.

V - Wherever I may roam

"Rover, wanderer

Nomad, vagabond

Call me what you will"

Qualquer lugar é um lugar para quem não pertence a lugar nenhum. Três lugares numa mesma frase, e ela não está em casa em nenhum deles. Há aqueles em que se sente bem, em que pode descansar e ficar por algum tempo, mas sabe que não é o seu lugar. Então, ela aproveita o lugar onde estiver no momento, dorme onde precisar e continua vagando. Gosta da liberdade de vagar. E mesmo que não gostasse, não há muita escolha. Assim, tenta fazer isso da melhor maneira possível. E a melhor maneira é seguir em frente e tentar não se importar.

VI - Song of myself

"All that great heart lying still

In silent suffering

Smiling like a clown until the show has come to an end
What is left for encore
Is the same old dead boy's song
Sung in silence"

Às vezes, no meio da noite, quando ainda não adormeceu e não sente vontade de escrever, quando não está em uma mesa de bar ou dormindo em algum lugar que mal conhece, ela pensa no amor, na inocência e na grande solidão do mundo. Imagina se, em algum lugar, há alguém que se sinta como ela, e se pergunta se duas pessoas pessoas que não pertencem a lugar nenhum podem pertencer uma à outra.
Mas no fundo, ela já conhece essa resposta.

3 comentários:

  1. Uau! Ótimas escolhas! E creio que Wherever I may roam tem muito a dizer para qualquer pessoa.

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  2. A resposta eh tão ambígua e dual quanto uma trilha sonora de yann tiersen; quanto as belas escolhas musicais que vc fez.

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