quarta-feira, 11 de julho de 2012

Languidez, memórias e umas doses de rum

Acordou com Ella Fitzgerald cantando "Summertime", mas não era verão. A brisa fria da noite de inverno entrava pela janela, passava pelo dossel e fazia a pele de Elisa arrepiar-se de maneira quase sensual. A brisa era um amante melhor do que muitos homens e, sentindo seu toque, Elisa esticou-se na cama e espreguiçou-se como uma gata lânguida que recebe um afago.
"Lânguida" era um adjetivo perfeito para descrever a mulher estirada molemente sobre os lençóis de algodão e edredons macios: voluptuosa, melancólica, frouxa em seu lento despertar. Lânguida.
Por um instante, pensou em aninhar-se novamente nos lençóis e entregar-se mais uma vez ao sono. Mas não podia, tinha de encontrar alguém.
Levantou-se e, deixando a proteção do dossel, sentiu o corpo estremecer com a friagem úmida que entrava pela janela e quase não encontrava barreiras para chegar à sua pele: Elisa dormia em roupas ínfimas, mesmo nos dias mais frios. E naquele dia, depois de sair do banho e antes de abandonar-se na cama de dossel, havia escolhido apenas uma leve camisola de seda rosa pálido para cobrir sua nudez.
Entretanto, a noite invernal não lhe permitiria tais trajes. Vestiu-se. Passou os dedos pelos cabelos embaraçados; não era adepta de escovas, preferia suas medeixas em selvagem desalinho. Amarrou bem firme as botas de cano alto, jogou por cima de tudo um trench coat preto e enfiou um maço de cigarros no bolso: estava pronta, elegantemente displicente.
Saiu de seu prédio na Rua Augusta e tomou seu caminho rumo ao bar de sempre. Enquanto caminhava, ouvia os gracejos dos seguranças dos bordéis da Baixa Augusta, elogiando suas pernas. Tinha belas pernas, sim, torneadas pelos degraus que subia todos os dias até o terceiro andar, pois em seu prédio antigo não havia elevador. Caminhava com passos lentos e gingados. Não se apressava, pois não perseguia nada e, mesmo que perseguisse, naquele lugar jamais iria encontrar.
Aquele era o lugar dos boêmios, das prostitutas, dos artistas frustrados e da classe média que, inconformada por ser simples classe média, buscava na decadência algo que conferisse algum charme às suas vidas vazias.  Mas Elisa não era nenhuma dessas figuras. Era apenas Elisa, e não buscava nada.
Chegou ao seu destino: um dos piores botequins de toda a rua, o balcão meio engordurado, um bêbado em uma das mesas. Mesmo assim, o lugar estava lotado de jovens bem apessoados usando roupas bonitas e cortes de cabelo da moda. A última moda era ostentar a decadência.
Elisa entrou, pediu uma dose de rum e sentou-se na última mesa disponível na calçada. A noite estava fria, mas ela queria acender um cigarro. Fumava sempre cigarros de cravo, e depois chupava balas de canela para tirar o gosto de cinzeiro da boca. Era esse o gosto que sentiria quem a beijasse: de cravo e canela.
Tragava lentamente e soltava a fumaça de maneira suave, formando uma nuvem cinza e preguiçosa à sua frente. Entre uma tragada e outra, pensava na pessoa que esperava no momento: um amigo apenas, embora algo lhe dissesse que poderia terminar a noite na cama dele, ou com ele na dela, tanto fazia. Uma noite fria não é uma boa ocasião para se dormir só.
De dentro do bar, vinha o som de uma conhecida canção de metal. "I can't remember anything, can't tell if this is true or dream..."
E enquanto tragava seu cigarro doce e esperava o homem que talvez a aqueceria naquela noite, fosse com uma conversa, fosse com seu corpo, uma lembrança lhe veio à mente: a lembrança de outro homem, que um dia havia lhe contado uma história que ela jamais esqueceria.

***
Ele tinha penas doze anos na época, e como todo menino de doze anos vivendo em uma cidade do interior, dividia seu tempo entre a escola, as brincadeiras ainda infantis nas ruas e algumas revistas pornográficas que um colega pegava entre as coisas do pai. Uma criança, apenas.
O pai trabalhava o dia inteiro em uma metalúrgica. A mãe fazia doces e bolos sob encomenda, os melhores da cidade, diziam. O trabalho lhes tomava a maior parte do tempo, mas o menino não ligava, tinha os amigos da rua com quem andar de bicicleta e jogar futebol.
Porém, sem ter quem acompanhasse seus deveres escolares, as notas começaram a cair. O pai ficou furioso. Esperava que o filho fosse a primeira geração da família a frequentar uma universidade, e para isso ele tinha de estudar desde cedo, nada de notas baixas.
Um dia, a mãe apareceu com uma novidade: ele teria um professor particular. Homem de família tradicional, seríssimo, formado com excelência, longos anos de carreira e ótimas referências. Além disso, muito religioso. A mãe ressaltava essa última qualidade acima de todas as outras. Seria caro, sim, mas eles poderiam apertar o cinto por uns tempos, os estudos do menino eram mais importantes.
Então, começaram as aulas. Duas vezes por semana, ele ia da escola direto para a casa do professor, não era muito longe, só algumas quadras. Estudava matemática, ciências e português. E, quase no fim do período, o professor lhe dava lições de religião. Eram essas que ele mais detestava.

***

Elisa respirou fundo. Aquela era uma história que nunca abandonava seu pensamento por completo, mas não sabia exatamente por que havia lhe ocorrido justo ali, naquela mesa na calçada, naquela noite de inverno. De dentro do bar, a mesma música ainda ressoava: "Hold my breath as I wish for death, oh please God help me".

***

No quarto do professor, ele se sentava na beirada da cama enquanto ouvia as lições. O professor falava sobre o pecado carnal. Dizia que todo homem e toda mulher, sendo fruto de união carnal, nascem em pecado e vivem em pecado. E o flagelo do corpo e o estudo do divino eram as únicas maneiras de livrar o espírito da danação eterna.
Então o professor o fazia se despir e deitar de bruços, enquanto colocava uma bíblia em suas mãos e o obrigava a ler passagens em voz alta, mas a dor era imensa, e ele engasgava e não conseguia se concentrar, o que tornava tudo pior, pois o professor se zangava e o repreendia, segurando-o mais forte, machucando sua carne de menino. Nessas horas ele tentava pensar nas mulheres nuas nas revistas, imaginar que era alguma delas ali com ele, ensinando-lhe as lições ao invés do professor. Entretanto, ele aprendera recentemente que isso também era um pecado, e ele merecia ser punido, então se esforçava para manter o foco na leitura e na dor, na leitura e na dor.
Aquele era o ensinamento e a punição, e também o segredo. "Caí no escadão que desce até a rua do professor", ele diria mais tarde à mãe, quando indagado sobre os hematomas no corpo jovem. E a mão ralharia com ele; mas que menino desastrado ele era, nunca prestava atenção por onde andava, sempre com a cabeça na lua, se fosse mais atento iria bem na escola e ela não precisaria gastar aquela fortuna com as aulas particulares.


***


Elisa não se recordava muito bem da ocasião em que ouvira aquela história pela primeira vez, nem do contexto. Por um momento, pensou que o homem que a contara estivera bêbado, mas depois lembrou-se de que ele não era afeito às bebibas. Mas o que mais levaria alguém a revelar um segredo tão profundo, tão íntimo, aprisionado durante anos no limbo entre a lembrança e o desejo do esquecimento? Ela não sabia, nem tentaria entender.
Através da nuvem de fumaça com cheiro de cravo, seu olhar era lânguido e introspectivo. Poderia-se comparar seus olhos aos de Bette Davis, se tivesse olhos maiores. Mas Elisa tinha olhos pequenos, talvez mais como os de Greta Garbo. Fazendo-se justiça, talvez fosse uma mistura das duas: olhos de Bette Garbo.
Levantou-se e foi buscar mais uma dose de rum. A música agora chegava ao fim, aquela música que ela conhecia tão bem. "Taken my soul, left me with life in hell". Virou a dose, olhou o relógio. Sua companhia estava atrasada. Alguns minutos apenas, mas ela não era mulher de esperar. Pagou a conta, enfiou as mãos bem fundo nos bolsos do casaco e seguiu seu caminho pela noite. O casaco preto, as botas pesadas e os passos, agora mais rápidos e firmes, davam a ela um ar quase intimidador. Não que fosse de fato intimidadora, mas por hora precisava sustentar essa postura. Uma garota precisa se defender hoje em dia.













Um comentário:

  1. Livia, como descrever sua escrita? Ou mesmo lhe dizer o que ela faz comigo? Sei que a sensação de ler o que você escreve vai muito além de arrepios. Acho que posso chamar de desejo... Escreve pra mim?

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