sexta-feira, 13 de julho de 2012

Sentimentalidades

O grande infortúnio daquela noite era: o casaco dela não tinha bolsos. Caminhava pelas ruas irregulares com as mãos ao lado do corpo, balançando no ritmo das passadas, e se sentia estúpida e gelada. Se tivesse bolsos, enfiaria as mãos bem no fundo deles, não tinha dúvidas.
Ela é esse tipo de pessoa que se aborrece com pequenos detalhes. Nunca com as coisas grandes, às quais o resto do mundo conferiria importância fundamental. São os pequenos detalhes que sempre lhe chamam a atenção, é deles que faz seus dramas diários. E o drama daquela noite era: seu casaco não tinha bolsos, e suas mãos estavam geladas.
Mas não vamos falar sobre bolsos ou mãos geladas. Mãos geladas são sempre assunto enfadonho. Antes poderíamos discursar sobre mãos quentes, acolhedoras e seguras, mas também não seria um bom assunto. Ninguém quer ler sobre mãos, quaisquer que sejam suas temperaturas.
Então vamos falar sobre você e ela, e tudo o que não existe entre vocês dois.
Suponha que algum dia você vá conhecê-la. Provavelmente, irá vê-la pela primeira vez em um desses cafés do centro, sentada em uma mesa externa, às voltas com um cachecol comprido num dia de vento forte. Os cabelos escuros emaranhados pelo vento, as faces levemente coradas pelo frio, a expressão de tédio. Vai imaginar se ela está sozinha, ou se está esperando alguém.
A segunda vez em que a vir será exatamente no mesmo lugar, porém ela estará com alguns amigos, rindo e falando alto. Ela vai parecer bem diferente assim. Os olhos cor de mel parecerão mais brilhantes mesmo de longe, o rosto, mais iluminado, e mesmo que você não consiga entender sobre o que ela fala, parece ser muito articulada. Uma mulher interessante.
Na terceira vez, você é finalmente apresentado a ela por um amigo em comum. Não vamos definir lugar ou ocasião, mais tarde você não se lembrará mesmo, e no fundo não fará diferença. A lembrança que ficará será a dos olhos dela, que expressão era aquela mesmo? Na época, você pensou que era de doçura pura e descomplicada, mas hoje sabe que não é bem assim. Há um oceano inteiro por trás daqueles olhos, e ninguém nunca chegará até o fundo sem se afogar.
Sem saber por que, ela gostará de você e aceitará seu convite para um jantar. Você a levará no melhor restaurante, pedirá o vinho mais caro, e ela rirá dos seus esforços: nada disso faz diferença pra ela. Coisas grandes demais, lembra? São as sutilezas que capturam sua atenção. Como aquela mecha de cabelo caindo nos seus olhos quando você a deixou no portão de casa. Uma fortuna num jantar, horas e horas tentando impressioná-la, é quase irritante que ela tenha sido fisgada por algo tão banal quanto uma mecha de cabelo. Ela vai passar algum tempo apenas olhando, criando coragem, e então vai estender a mão para afastar o cabelo dos seus olhos. Logo depois disso, você tentará beijá-la, e ela permitirá. Você a sentirá levemente trêmula nos seus braços, sentirá que ela tem cheiro de flores e gosto de hortelã, e então estará perdido.
Ela não é o tipo de mulher provocante, mas costuma atrair alguns olhares. Isso te fará remoer um ciúme amargo, e ela achará graça disso. Então ficará furioso, e ela apenas sorrirá pra você, balançando a cabeça sem dizer nada. Este será o hábito dela que você mais detestará. O que você nunca vai saber é que ela não ri de você, nunca riu de você de verdade. Ela ri do absurdo do seu ciúme. Ri porque ela está com você porque ela quer, e não porque você assim deseja, e isso faz toda a diferença do mundo. Ela já teria partido se quisesse: nada a impede de te deixar. Mas ela fica porque quer, é por isso que você não deveria se preocupar, não vê o quanto é desnecessário? Mas há certas coisas que ela nunca fala, como quantas horas por dia passa pensando em você, ou como olha para o relógio o tempo todo quando sabe que vai te encontrar. Esses são seus pequenos segredos.
E vocês irão brigar com certa frequência; nada grave, apenas mágoa passageira, não significa que são incompatíveis. Acontece que ela vai aonde quiser, e você é controlador. Ela não faz por mal: apenas aprendeu a ser assim. Brigas bobas.
Entretanto, de vez em quando você a fará chorar. Propositalmente ou não, algum dia irá dizer algo (uma coisa pequena, certamente) que partirá o coração dela. E então ela não vai discutir, nem começar uma briga: irá chorar sozinha, sem som, apenas as lágrimas rolando pelo rosto, quem sabe um soluço de vez em quando. Você nem vai saber.
Não será fácil, pois ela costuma fazer só aquilo que quer. Porém, vai valer a pena, se o que você deseja é uma companhia silenciosa. Ela é ótima nisso: ficar horas e horas ali, lado a lado, em silêncio. Também é boa para conversar,  pode ouvir todas as histórias da sua vida e contar as da vida dela.
Mas são as conversas silenciosas que mais irão te marcar. É disso que sentirá mais falta quando terminar, porque tudo algum dia termina. Não é drama desta vez: é simplesmente o inevitável. Algum dia, vocês se magoarão irreversivelmente. Ou então, simplesmente não se amarão mais. "Ainda podemos ser amigos?", você perguntará. "Eu não quero", será a resposta dela. Assim, sem qualquer explicação racional. Ela está longe de ser um ser racional. É antes totalmente guiada pela paixão, pelos sentimentos e vontades. Um serzinho passional e voluntarioso. E você a adora, exatamente assim. Mas já é tarde.
Ou talvez nada disso aconteça. Talvez você só a veja aquela primeira vez, no café, tentando domar o cachecol que se rebela ao vento. E ela nem é assim tão bonita, só meio estranha, quem sabe seja apenas isso que a faz atraente. Você a olha, mas nem pensa em parar para falar com ela. Continua seu caminho a passos largos. E nunca mais a vê.


Um comentário:

  1. Caraca, que texto lindo Lívia, sério mesmo! Você é muito boa em lidar com sentimentalismo exacerbado, seja nas coisas boas e aconchegantes, seja nas coisas ruins e assustadoras. O realismo está presente em cada palavra, e é isso o que mais me impressiona cada vez que leio algo de sua autoria!
    Parabéns mesmo, e continue com o excelente trabalho, nós só temos a agradecer!

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