segunda-feira, 17 de março de 2014

sem título

Assistia a uma menina que praticava arqueria. Atirava flecha atrás de flecha, mal preparando a mira, mas nunca errava o alvo. Era ainda muito jovem, mas fazia aquilo com confiança invejável, como se a habilidade fosse instintiva. Tinha um dom.
A seguir, confrontava uma amiga. "Como você, justo você, pode falar assim dela? Um dia, ela foi sua amiga também. Uma grande amiga". Por que estava tão irritada? Não sentia qualquer simpatia pela pessoa que defendia tão fervorosamente no sonho.

***

Elisa acordou. Espreguiçou-se languidamente entre os lençóis de algodão na grande cama de dossel, protelando o levantar, atordoada pelas excessivas horas de sono. Dormir sempre fora um grande prazer, e nas noites frescas de primavera, quando o aroma das damas-da-noite adentrava pela janela e impregnava o quarto com sua doçura, esse prazer tornava-se particularmente sedutor. Finalmente Elisa levantou-se, livrando-se camisola de cetim claro que deslizou suavemente por seu corpo, sendo abandonada no chão. Não era o tipo de mulher que se incomoda com essas pequenas desorganizações: ela mesma era um grande acúmulo de pequenas desorganizações, esmeradamente aprimoradas ao longo de quase trinta anos.

Caminhou até o aparelho de som, escolheu começar o dia com Edith Piaf. Les Amants d'un Jour, em bom volume, começou a tocar enquanto Elisa perguntava-se por que tivera sonhos tão estranhos naquela noite. Poderia dizer que nem pareciam seus, mas seria incoerente: ninguém mais dividia os sonhos com ela.
Uma garota que mal conhecia. Uma mulher que, há muito, não queria mais conhecer. Talvez o subconsciente não fizesse sentido algum, afinal. Assim como tantas outras coisas. Decidiu não pensar mais sobre o assunto.

Encheu a banheira e banhou-se demoradamente. Amava a sensação da água morna e dos sais de banho envolvendo-lhe pele, uma carícia bem-vinda numa manhã ociosa. Levantou-se apenas quando ouviu um chamado vindo do outro lado da porta. Por um instante, pensou ser uma voz de mulher, rouca, idosa; mas sabia que era a gata branca, exigente, queixando-se do isolamento da dona. A gata enroscou-se em suas pernas quando ela voltou ao quarto.

Elisa enfiou-se num vestido leve, desceu preguiçosamente as escadas de madeira do sobrado antigo e dirigiu-se à sala de estar, de onde veio o som de um espirro. O gato preto de olhos verdes, orgulhoso,  encarou-a do grande sofá: um soberano observando sua súdita. Quase destoava do ambiente leve e delicado da decoração provençal. Outro par de olhos verdes costumava sentar-se naquele mesmo lugar. Naquele dia, as lembranças adormecidas acordaram com Elisa. Refletiu: é a grande ironia da vida; ser tudo tão passageiro, e as lembranças, tão duradouras.

Seu devaneio foi interrompido pelo barulho de um livro caindo da estante, que guardava volumes e volumes de Poe, Whitman, Austen, Joyce, Guimarães Rosa, Bandeira, Espanca e, eventualmente, servia de cama para um gato. A gata amarela, pequena e usualmente cuidadosa, havia derrubado um exemplar d'O Livro de Mágoas, aberto em "Amiga". Elisa recolheu o livro e suspirou, sentindo que, além das lembranças, as coincidências também haviam decidido atormentá-la.

Precisava de um café forte, amargo, que espantasse ao menos temporariamente a doce melancolia. Enquanto a cafeteira trabalhava, sentou-se à mesa e passou a folhear o livro de maneira displicente, quando as contas da cortina da cozinha soaram sutilmente, indicando que alguém adentrava. O gato rajado de cinza e branco aproximou-se de mansinho, sem fazer mais um ruído. Apenas sentou-se aos pés da dona, plácido, trazendo consigo mais memórias.

Uma lágrima de frustração correu pelo rosto de Elisa. Aquilo era demais.

***

Elisa acordou. Sentia os ombros doloridos por uma noite mal dormida e a cabeça latejando com a ressaca da noite anterior. Dormira mal, mas lembrava-se vagamente de sonhos incomuns. Dormiria mais se pudesse, muito mais. Mas já estava atrasada, e precisava de um banho para sentir-se gente novamente antes de subir a Rua Augusta correndo, tentando chegar no trabalho num horário decente. Àquela hora da manhã de sábado, os últimos boêmios ainda estariam na rua, pelas calçadas dos bares. Ou  estariam ali. Quem poderia dizer? Não importava. De qualquer maneira, ela teria de suportar os gracejos e o fedor de vômito e bebidas baratas.

Levantou-se da cama de dossel, a única coisa realmente bela no pequeno apartamento. Além dela, talvez, ou pelo menos era o que diziam. Entretanto, não costumava dar ouvidos a esse tipo de comentário. Cruzou o quarto e sala a passos apressados. Tomou uma ducha, enfiou-se em jeans e camiseta.
A entrega à melancolia e aos devaneios teria de esperar até a noite.

***

Elisa acordou.

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