sexta-feira, 8 de junho de 2012

Décadence sans elegance



Acordar cedo em dias frios e chuvosos deveria ser proibido por lei. A pessoa acorda com o despertador tocando, vira-se na cama e volta a dormir. Levanta-se atrasada para o trabalho e, chegando lá (molhada e com frio), vê-se sozinha em uma sala, a observar a chuva pela porta aberta.
Vai ser um dia parado, então o que resta é escrever. A cena ficaria mais completa com uma caneca de café ao lado. Mas eu não bebo café.
Na tentativa de escrever, me voltam à mente as coisas nas quais tenho pensado nos últimos dias. E recentemente tenho pensado na decadência. Bem, não exatamente na decadência em si, mas em como parece ter se tornado um estranho e recorrente hábito as pessoas se esforçarem para parecerem elegantemente decadentes. Decadence avec elegance? Não vejo beleza, nem graça, nem atrativo nenhum nisso, honestamente.
Talvez pelo fato de que eu mesma não precise forçar decadência nenhuma. Observo essa decadência na minha família há anos, e não tenho nenhum apreço especial por ela.
Vejo o que somos hoje, em comparação com as histórias que contam sobre o que fomos um dia. E o cenário atual me parece por demais melancólico.
Lembro do quadro para o qual olhei por mais tempo quando visitei a Pinacoteca do Estado. Estava na sala de retratos masculinos, e na legenda lia-se Eusébe Stevaux. O primeiro da família a chegar no Brasil, um engenheiro francês que deixou algumas obras por São Paulo, um viaduto com seu nome e um retrato num lugar importante, que viria a ser o orgulho da família. Ninguém mais vai até lá para ver o retrato, entretanto.
Mentalmente, abro o guarda-roupas e encontro o casaco de pele de coelho que pertenceu a minha avó paterna. A pele é verdadeira, impressionantemente macia e bem conservada apesar de ter pelo menos setenta anos de idade. Quanto deveria valer uma peça dessas nos anos quarenta? Não pouco, certamente.
Penso na mulher que a vestia. Que bela mulher ela era, sempre de saltos altos, esmalte e batom vermelhos, o cabelo impecável. E não usava bijuterias. Brincos, pulseiras, colares, tudo era de ouro verdadeiro. Até um relógio inteiro de ouro. Lembro do rosto dela num retrato antigo. Era realmente linda, e penso que gostaria de me parecer mais com ela.
Não lhe era permitido trabalhar, mas financeiramente não havia necessidade; o marido lhe dava tudo o que quisesse, assim como o dava aos três filhos.
 A única menina fazia aulas de piano, e tinha um vestido novo feito sob encomenda a cada baile. Nunca repetia uma roupa.
O filho mais novo nunca gostara de trabalhar. Casou-se, divorciou-se e passou o resto da vida morando com o pai, até que a bebida e o câncer acabaram com ele.
O filho mais velho gostava de dançar, de ouvir música erudita e jazz. Aprendeu a tocar piano sozinho, observando as aulas da irmã. Casou-se ainda menino, dezenove anos apenas. Teve quatro filhos e deixou a família cerca de vinte anos depois. Nunca procurou-os novamente, nem quis sua parte da casa, a grande casa que hoje valeria quase um milhão.  
Anos depois casou-se com outra mulher, que viria a ser minha mãe. Construiu outra grande casa, que nunca chegou a ser totalmente finalizada. Muitas coisas nunca foram finalizadas.
A bela mulher que era minha avó já não existe. Embora consumida pela depressão, foi o câncer que de fato a levou.
Meu pai definha numa cama sob os sintomas devastadores de uma doença degenerativa e incurável. Não ouve mais Tchaikovsky nem George Gershwin.Há anos o piano silenciou. Hoje ele não conseguiria  ao menos sentar-se à frente dele.
Enquanto isso, minha mãe senta-se em sua poltrona, lendo seus livros e fumando um cigarro barato atrás do outro. Usa pérolas nas orelhas e no pescoço. Às vezes escolhe alguns anéis de ouro também.
Sua expressão não denuncia o que se passa dentro dela, mas eu sei: ela lembra da época em que comprava as próprias joias, em que tinha uma coleção de sapatos e uma bolsa para combinar com cada um. Frequentava os melhores bailes da cidade, afinal os anfitriões eram seus parentes ou conhecidos. Viajava em todas as férias.
E hoje ela olha para as rachaduras na parede e as goteiras no teto, e detesta aquela  casa, a grande casa que está se degenerando. Detesta estar ali e detesta o homem doente no quarto. De nada lhe valem as joias, ela não tem mais onde usá-las. Segundo ela, não há mais nenhuma alegria em sua vida. “O cigarro é meu único prazer. Vou fumar até morrer”, ela diz.
            Enquanto isso, seu filho está em uma importante reunião de negócios. Ele só volta pra casa de vez em quanto, traz um vinho caro, passa um tempo de mau humor e logo vai embora.
A filha se senta numa mesa de bar na baixa Augusta, com um copo à frente e um cigarro na mão. Ela imagina como vai custear sua próxima publicação,  como vai pagar o próximo aluguel;  se pergunta porque certas coisas vão tão mal e se sente solitária. Depois resolve afastar esses pensamentos e pedir mais uma bebida. Há muitas vozes em sua cabeça. Claro que essa filha sou eu.
O brilho de outros tempos se apagou aos poucos. Não tenho joias como minha mãe e minha avó tiveram. As únicas coisas douradas que fazem parte da minha vida são as luzes das ruas enquanto caminho de volta do trabalho. O mais próximo de pedras precisosas que possuo são os olhos coloridos dos meus gatos, minhas mais constantes e agradáveis companhias. Os anos dourados se foram, e não há encanto nenhum na decadência que se instalou no lugar deles.
Perdoem a longa divagação. O dia está cinzento e chuvoso, e a chuva refresca a memória. Assim como o sol a iluminaria. De uma maneira ou de outra, no fim tudo são apenas memórias, e raramente conseguimos fugir delas.

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