Acordar
cedo em dias frios e chuvosos deveria ser proibido por lei. A pessoa acorda com
o despertador tocando, vira-se na cama e volta a dormir. Levanta-se atrasada
para o trabalho e, chegando lá (molhada e com frio), vê-se sozinha em uma sala,
a observar a chuva pela porta aberta.
Vai
ser um dia parado, então o que resta é escrever. A cena ficaria mais completa com
uma caneca de café ao lado. Mas eu não bebo café.
Na
tentativa de escrever, me voltam à mente as coisas nas quais tenho pensado nos
últimos dias. E recentemente tenho pensado na decadência. Bem, não exatamente
na decadência em si, mas em como parece ter se tornado um estranho e recorrente
hábito as pessoas se esforçarem para parecerem elegantemente decadentes. Decadence avec elegance? Não vejo beleza, nem graça, nem atrativo nenhum nisso,
honestamente.
Talvez
pelo fato de que eu mesma não precise forçar decadência nenhuma. Observo essa
decadência na minha família há anos, e não tenho nenhum apreço especial por
ela.
Vejo
o que somos hoje, em comparação com as histórias que contam sobre o que fomos
um dia. E o cenário atual me parece por demais melancólico.
Lembro
do quadro para o qual olhei por mais tempo quando visitei a Pinacoteca do
Estado. Estava na sala de retratos masculinos, e na legenda lia-se Eusébe Stevaux. O primeiro da família a
chegar no Brasil, um engenheiro francês que deixou algumas obras por São Paulo,
um viaduto com seu nome e um retrato num lugar importante, que viria a ser o
orgulho da família. Ninguém mais vai até lá para ver o retrato, entretanto.
Mentalmente,
abro o guarda-roupas e encontro o casaco de pele de coelho que pertenceu a
minha avó paterna. A pele é verdadeira, impressionantemente macia e bem
conservada apesar de ter pelo menos setenta anos de idade. Quanto deveria valer
uma peça dessas nos anos quarenta? Não pouco, certamente.
Penso
na mulher que a vestia. Que bela mulher ela era, sempre de saltos altos,
esmalte e batom vermelhos, o cabelo impecável. E não usava bijuterias. Brincos,
pulseiras, colares, tudo era de ouro verdadeiro. Até um relógio inteiro de
ouro. Lembro do rosto dela num retrato antigo. Era realmente linda, e penso que
gostaria de me parecer mais com ela.
Não
lhe era permitido trabalhar, mas financeiramente não havia necessidade; o
marido lhe dava tudo o que quisesse, assim como o dava aos três filhos.
A única menina fazia aulas de piano, e tinha
um vestido novo feito sob encomenda a cada baile. Nunca repetia uma roupa.
O
filho mais novo nunca gostara de trabalhar. Casou-se, divorciou-se e passou o
resto da vida morando com o pai, até que a bebida e o câncer acabaram com ele.
O
filho mais velho gostava de dançar, de ouvir música erudita e jazz. Aprendeu a
tocar piano sozinho, observando as aulas da irmã. Casou-se ainda menino,
dezenove anos apenas. Teve quatro filhos e deixou a família cerca de vinte anos
depois. Nunca procurou-os novamente, nem quis sua parte da casa, a grande casa
que hoje valeria quase um milhão.
Anos
depois casou-se com outra mulher, que viria a ser minha mãe. Construiu outra
grande casa, que nunca chegou a ser totalmente finalizada. Muitas coisas nunca
foram finalizadas.
A
bela mulher que era minha avó já não existe. Embora consumida pela depressão,
foi o câncer que de fato a levou.
Meu
pai definha numa cama sob os sintomas devastadores de uma doença degenerativa e
incurável. Não ouve mais Tchaikovsky nem George Gershwin.Há
anos o piano silenciou. Hoje ele não conseguiria ao menos sentar-se à frente dele.
Enquanto
isso, minha mãe senta-se em sua poltrona, lendo seus livros e fumando um
cigarro barato atrás do outro. Usa pérolas nas orelhas e no pescoço. Às vezes escolhe
alguns anéis de ouro também.
Sua
expressão não denuncia o que se passa dentro dela, mas eu sei: ela lembra da
época em que comprava as próprias joias, em que tinha uma coleção de sapatos e
uma bolsa para combinar com cada um. Frequentava os melhores bailes da cidade,
afinal os anfitriões eram seus parentes ou conhecidos. Viajava em todas as
férias.
E
hoje ela olha para as rachaduras na parede e as goteiras no teto, e detesta aquela
casa, a grande casa que está se
degenerando. Detesta estar ali e detesta o homem doente no quarto. De nada lhe
valem as joias, ela não tem mais onde usá-las. Segundo ela, não há mais nenhuma
alegria em sua vida. “O cigarro é meu único prazer. Vou fumar até morrer”, ela
diz.
Enquanto
isso, seu filho está em uma importante reunião de negócios. Ele só volta pra
casa de vez em quanto, traz um vinho caro, passa um tempo de mau humor e logo
vai embora.
A
filha se senta numa mesa de bar na baixa Augusta, com um copo à frente e um cigarro
na mão. Ela imagina como vai custear sua próxima publicação, como vai pagar o próximo aluguel; se pergunta porque certas coisas vão tão mal e
se sente solitária. Depois resolve afastar esses pensamentos e pedir mais uma
bebida. Há muitas vozes em sua cabeça. Claro que essa filha sou eu.
O
brilho de outros tempos se apagou aos poucos. Não tenho joias como minha mãe e
minha avó tiveram. As únicas coisas douradas que fazem parte da minha vida são
as luzes das ruas enquanto caminho de volta do trabalho. O mais próximo de
pedras precisosas que possuo são os olhos coloridos dos meus gatos, minhas mais
constantes e agradáveis companhias. Os anos dourados se foram, e não há encanto
nenhum na decadência que se instalou no lugar deles.
Perdoem
a longa divagação. O dia está cinzento e chuvoso, e a chuva refresca a memória.
Assim como o sol a iluminaria. De uma maneira ou de outra, no fim tudo são apenas
memórias, e raramente conseguimos fugir delas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário