quinta-feira, 7 de junho de 2012

Meia dúzia de quadros escuros.

Dias atrás, na casa de minha mãe, parei no alto da escada que leva até meu quarto, de onde posso observar toda a grande sala da casa (inutilmente grande, na verdade. Não se precisa de muito espaço para abrigar uma mulher solitária e um grande vazio), e comecei a reparar nos quadros nas paredes. Meia dúzia de quadros de cores escuras, sombrios, abstratos e incompreensíveis.
Quadros pintados por meu pai.

Repentinamente, me veio à memória a época em que os quadros não somavam meia dúzia, mas várias dúzias. Quadros pendurados pela casa inteira. Quadros empilhados pelos cantos. Quadros debaixo da grande mesa de pintura, atulhada com pincéis e tubos de tinta. Dúzias de quadros.

Meu pai costumava ser um dos artistas a expor suas obras na Praça da República, na feira de artes de domingo. Os estrangeiros costumavam gostar dos quadros dele. E ele costumava se orgulhar disso.
"São todos muito escuros, por isso você não vende mais. Quem colocaria essas coisas mórbidas em casa?", minha mãe costumava dizer. A resposta dele, em essência, era sempre a mesma. "É o meu estilo".

E assim foi durante anos. Quadros escuros por toda a casa, a mesa de pintura no meio da sala, o cheiro de tinta e tíner impregnando o ambiente. As feiras de domingo o mantinham fora durante o dia todo. E na volta, caso tivesse vendido um quadro, ele sempre tinha algo para mim: uma pulseira de pedras negras, uma de pedrinhas coloridas, um brinco que lembrava o adereço de alguma sereia.

Não lembro ao certo quando foi, e até hoje ainda tento entender por que aconteceu. Mas um dia, ele começou a rasgar todas as suas telas. Pegou uma faca e rasgou-as uma a uma; os quadros que estavam debaixo da mesa, os que estavam empilhados pelos cantos, a maioria dos quadros nas paredes. Até mesmo aquele que mostrava um bosque noturno, o único não abstrato, o quadro que ele havia dedicado especialmente para minha mãe. Eu realmente gostava daquele quadro. Gostaria que ele o tivesse poupado.

Poucos quadros sobraram depois desse dia. Apenas a meia dúzia que ainda enfeita as paredes da sala da minha mãe e um que trouxe para minha própria sala. Ele nunca mais pintou. Dizia que não queria mais pintar. Ou será que não podia mais?

Faz anos que isso aconteceu. Mas a memória é mesmo traiçoeira, se esconde, espera estarmos despreparados e então nos dá o bote. E eis que naquele dia, no topo daquela escada em caracol, essa memória me pegou.

E agora, dias depois, me lembro do comentário de minha mãe ao ler meu primeiro conto publicado. "É muito tétrico", disse ela. Não tenho certeza se de fato leu o segundo, e certamente não lerá o terceiro. Seja como for, ela não gostaria de nenhum deles. São todos contos de amor e morte, no fim das contas. E sobre o que mais vale a pena escrever?

É engraçado pensar nisso, mas acho que finalmente entendo os quadros escuros do meu pai. Talvez num futuro distante algum deles se torne a capa para um livro de contos escuros.

3 comentários:

  1. Como te falei... sendo fictício ou não, isso é muito bom! Não só o que vc contou, mas como contou... sendo um conto ou não =)
    Parabéns, escritora ;)

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    1. Obrigada, tentarei fazer as postagens todas nesse estilo =)

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  2. Só não me rasgue à faca seus contos, por favor! Gosto do seu estilo e, com certeza, não sou a única! Parabéns!

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