sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

A Filha da Lua


Muito tempo atrás, numa noite de fase nova, a lua perdeu uma de suas filhas. Aproveitando-se da distração da mãe, que havia voltado as costas para o mundo, desprendeu-se do manto do céu, caiu no mar e, alcançando a praia, tomou a forma de uma mulher.
            Vagou durante algum tempo pelo litoral, solitária e nua naquela noite quente de verão. Por fim, avistou alguém que vinha ao longe, montado a cavalo. Teria sido um grande infortúnio se o cavaleiro fosse um salteador perverso, pois a filha da lua era bela como o céu estrelado de uma noite de verão, porém indefesa como uma rosa sem espinhos. Entretanto, para sua sorte e alegria, quem vinha era o Cavaleiro Branco.
            Dizia-se que era o mais honrado e bravo cavaleiro que jamais existira. Era assim chamado por cavalgar sempre um corcel imaculadamente branco e trajar um manto da mesma cor. Vencera inúmeros duelos e ganhara honrarias em diversas batalhas. Não era especialmente belo, mas possuía um temperamento amável e modesto.
E era ele quem a filha da lua pensava em encontrar quando abandonou seu lugar no céu. Observara-o por noites sem fim, admirado seus atos de bravura, suspirando por seus modos gentis.
O Cavaleiro Branco, vendo a donzela sozinha e desprotegida, parou para acudi-la. Ela era esquia, com um rosto delicado em forma de coração, longos cabelos prateados e olhos azuis de tempestade. Não podia deixá-la abandonada à própria sorte. O cavaleiro perguntou de onde vinha e por que motivo estava ali. Ela disse que era de um lugar distante, tão distante que jamais poderia voltar. Disse que viera para ser de alguém. Ele lhe perguntou qual era o seu nome e a qual família pertencia.
- Dervana – ela lhe respondeu - , mas penso que minha família jamais me quererá de volta.
Apiedado com condição da moça, o cavaleiro levou-a até a corte onde vivia e servia. Lá Dervana, a filha da lua, foi recebida entre as donzelas e damas de companhia, vestida em belos vestidos de seda e veludo e honrada com elogios a sua beleza. O Cavaleiro Branco a tratava mais gentilmente do que a qualquer um. Era como viver em um sonho bom.
Entretanto, seu sonho começou a fenecer quando lhe contaram que seu Cavaleiro Branco havia sido prometido à outra, uma donzela de alto nascimento, tão bela quanto desagradável. A pobre filha da lua, em sua inocência, não pensara que uma donzela sem sobrenome nem dote jamais seria dada em casamento a um homem de tão nobre reputação.
O tempo se passava e, mesmo com o coração partido, Dervana continuava sendo encantadora aos olhos de todos. Durante o dia, em companhia de outras donzelas, caminhava pela praia ou pelos jardins, onde bordavam e cosiam à sombra das árvores. À noite, cantava nos grandes salões, com uma voz bela e suave. O Cavaleiro Branco sempre aparecia para ouvi-la, e nessas ocasiões tinha os olhos repletos de afeto e de certa tristeza.
 Porém, quando o sol se deitava, a filha da lua não ousava sair a céu aberto. Temia que a mãe a encontrasse e a punisse por sua fuga.
De fato, a lua procurava por sua filha, mas não a encontrava. Talvez nunca a tivesse encontrado, não fosse a desventura que se seguiu.
Invejosa dos olhares e tratamentos que o Cavaleiro Branco dispensava à donzela e desconfiada de seus cabelos prateados, sua prometida buscou a origem da rival em velhos livros de magia. Encontrou então um que dizia que, às vezes, uma filha da lua se encantava por um homem humano, deixando mãe e irmãs e assumindo a forma de uma mulher de cabelos prateados e olhos azuis escuros, para viver com ele.
Era uma noite de lua crescente quando a noiva do Cavaleiro Branco dirigiu-se à praia para falar com a lua.
- Sei onde está sua filha fugida – ela disse – Está na corte deste reino, e no momento tenta seduzir meu noivo, o Cavaleiro Branco.
- Então foi o Cavaleiro Branco que levou minha filha? – respondeu-lhe a lua – Maldito seja ele, que recorreu a mim no passado e agora esconde o que me é precioso.
Então, a noiva do cavaleiro revelou a verdadeira intenção com a qual fora até ali:
- Posso devolver sua filha, mas com uma condição: em troca, quero que faça meu noivo esquecer-se dela completamente. Quero que seja como se ele nunca a tivesse encontrado. E quero que sua filha seja castigada.
-  Assim será – assentiu a lua. – Traga-me minha filha daqui a algumas noites, quando minha face estiver plena no céu. Então terei força para carregá-la de volta, e poder para enfeitiçar seu prometido.
Assim combinado, a prometida do Cavaleiro Branco retornou ao castelo. Aproveitando-se da grande influência da qual desfrutava, ordenou que Dervana fosse trancada numa torre e que nada se falasse sobre seu paradeiro. Pretendia mantê-la aprisionada até a chegada da lua cheia, quando a devolveria à mãe, se livraria de sua companhia indesejável e ficaria satisfeita com castigo que a outra receberia.
A filha da lua lamentava-se em sua prisão solitária. Se nunca pudera ter o amor de seu cavaleiro, antes ao menos podia vê-lo, trocar com ele algumas palavras inocentes, cantar belas canções para que ele ouvisse. Ali, nada podia fazer senão esperar e temer o dia em que seria enviada para longe dele.
Não se passaram muitos dias antes que o Cavaleiro Branco notasse a ausência de sua protegida nos salões. Desconfiado pelo repentino desaparecimento, certa noite foi perguntar à sua noiva o que teria acontecido a ela.
- Sua favorita era uma filha da lua – ela lhe disse, com amargor – Seduziu-o com seus encantos e teria roubado-o de mim. Mas certamente viu que não conseguiria e envergonhou-se, pois acho que pretende acabar com a própria vida. Vi-a atirar-se ao mar – mentiu, esperando que assim ele a esquecesse.
            Mas ao ouvir essas palavras, o Cavaleiro Branco temeu pela filha da lua. Esquecendo sua honra e o cuidado de não revelar o que sentia, correu para a praia, sem que a prometida conseguisse impedi-lo. Chegando lá, atirou-se ao mar, esperando ainda encontrar sua amada e trazê-la de volta.
            Do alto de sua torre, Dervana viu o cavaleiro jogar-se ao mar e lutar contra as ondas enquanto a procurava. Temendo a morte do amado, arriscou-se pulando a janela e descendo pelas plantas trepadeiras que revestiam a torre. Se não conseguisse ajudá-lo sozinha, poderia ao menos implorar para que a mãe o fizesse.
 Porém, antes que conseguisse chegar segura ao chão, o galho no qual de apoiava quebrou, derrubando-a e ferindo-a gravemente.
            A noiva correu até a torre para buscar Dervana, pois sabia que só a visão dela faria seu prometido deixar o mar. Depois encontraria uma explicação para sua mentira. Quando chegou à torre e a encontrou vazia, enfureceu-se. Pensou que tinha sido traída, que um dos guardas tivesse libertado sua prisioneira. Descontrolou-se, gritando com os guardas:
            - Quem de vocês a libertou? Quem me desobedeceu? Quem? Quem? Quem?
            Enquanto isso, fora do castelo, a filha da lua finalmente alcançara a praia. Entretanto, estava ferida e fraca demais, e só viveu o suficiente para ver seu pobre cavaleiro ser tragado pelo mar, sem forças, ainda procurando por ela e chamando seu nome.
            A lua, ressentida do cavaleiro que lhe roubara a filha, nada fez para ajudá-lo. E, sem sua plena força, nada pode fazer quando viu a filha morrer e transformar-se em suave areia da praia. Porém, atendendo ao pedido das outras filhas, que choravam a irmã para sempre perdida, apiedou-se dos enamorados.
            Assim, de tempos em tempos, vira o rosto para o mundo e finge nada ver enquanto a maré sobe e o Cavaleiro Branco, transformado num espírito do mar, vem em suaves ondas beijar sua amada na areia da praia.
            E a noiva do cavaleiro, culpada pelo ocorrido, foi transformada pela lua em coruja, condenada para sempre a falar uma língua que ninguém entendesse, para que não pudesse mais provocar desgraças.
            Mas ainda hoje ela sai pela noite, procurando quem a desobedeceu, perguntando com seu olhar acusador: “Who? Who? Who?”.



Conto publicado originalmente na antologia Tratado Secreto de Magia - Volume 2, pela Andross Editora.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Minha jornada pela imaginação

Estou cansada. Meus olhos ardem pelo uso prolongado das lentes de contato, meu corpo, cansado, reclina-se no sofá quase involuntariamente. A meia-luz torna minha pele levemente cintilante pelo suor.
Foi a melhor noite em muito tempo, e um fim de ano melhor do que o esperado.
Sim, para mim o ano acabou hoje, quando adentrei o empório dos sonhos e fui levada a uma jornada inesquecível, no final da qual eu sabia que voltaria a olhar o mundo como um baú repleto de maravilhas a serem descobertas; com os olhos da inocência.
Não foi um ano fácil: passei metade dele aprendendo a difícil lição de como mentiras e paixões custam a morrer, e a outra metade buscando um amparo, um consolo, algo que parecia inatingível. Eu sentia que estava perdendo algo da minha essência, em dias que lembravam contos para assustar.
Chorei muitas vezes, este ano. Mas chorei ainda mais hoje. Porém, não por novas amarguras. Eu estava apenas pegando minhas lágrimas de volta, de certa forma. Todas aquelas que me foram arrancadas injustamente.
Muito me foi oferecido, justiça seja feita. Entretanto, nada de que eu realmente precisasse. Intimamente, queria apenas uma demonstração de verdade e inocência. Ou de verdadeira inocência. Ou das duas coisas. Só precisava saber que essas coisas ainda existiam no mundo. Necessitava não sentir meu coração tão perdido e desesperançado. Desejava poder sonhar novamente.
Por minha sorte ou pura artimanha do destino, as pessoas sempre se encontram com elas mesmas, cedo ou tarde. Pelo menos é nisso que acredito. Há algo de mais intrínseco na alma, no cerne humano, algo quase selvagem, que nunca nos pode ser tirado. Há uma essência. E a minha, definitivamente, não combina com tanta amargura passiva. Sou a mestra dos meus próprios desejos, e responsável por meu próprio destino.
Voltei a sonhar constantemente, em todos os bons significados que o verbo "sonhar" possa ter. Assim como a desejar que, em algum lugar, alguém esteja sonhando comigo também. Na verdade, não exatamente comigo, mas com a ideia de mim.
De além das colinas e mais distante, algo claramente retornou. Como se um ser mágico tivesse trazido de volta minha criança interior, que eu nunca deveria ter deixado partir. Algo renasceu.
Talvez por causa de uma única canção, ouvida repetidas vezes, que me fez crer que muitos grandes corações sofrem em silêncio, cada um levando em si uma história diferente. Porém, ainda que jamais se encontrem, não estão de fato sozinhos no mundo. É que cada um pertence a uma diferente canção, e cada canção tem sua beleza, ainda que preserve aquela sutil melancolia.
Sendo assim, hoje me preparei para fechar um ciclo. Abandonei a amargura que não me é própria. Guardei apenas um pouquinho da melancolia, pois esta é parte inerente de mim. No mais, guardei apenas as coisas boas e doces. Tão doces quanto guloseimas de parques de diversão.
Preservei também a ânsia de aventura, a vontade de sentir a barriga gelar durante um passeio de montanha-russa.
E eis que esse ciclo se fechou no momento em que deixei o carrinho do brinquedo que me levou para a jornada de hoje. Foi realmente uma jornada incrível, pelos caminhos das emoções e das memórias.
Entretanto, foi uma viagem cansativa. Que venham novas aventuras e novos sonhos. Mas não hoje. Este é meu último passeio do dia. E amanhã, espero acordar de espírito renovado para o grande parque de diversões da vida.



"Sanitarium é o lugar para onde as pessoas vão para curar a mente. Imaginarium é onde se cura a imaginação."  - Tuomas Holopainen



domingo, 9 de dezembro de 2012

Sobre as pessoas de olhos escuros

Se há algo que realmente me entretém, é reparar nas minhas particularidades. Pequenas manias, gostos, gestos, qualidades e imperfeições. Detalhes que fazem de mim o que sou. Creio que todos deveriam atentar às suas particularidades.
E dentre as minhas, uma das que considero mais interessantes é a seguinte: tenho notável preferência por pessoas de olhos escuros. Não, preferência não seria a palavra. Talvez, o mais correto seria afinidade. Ou fascínio. Ou simplesmente "me dou melhor com", já que, na realidade, não é uma escolha consciente.
Olhos claros são bonitos de se ver. Azuis, verdes, cor-de-mel. Alguns parecem quase violetas. Lindos, de fato. Alguns parecem ter luz própria. Outros não possuem luz alguma. Poucos marcaram minha vida.
Porém, os olhos escuros... o que dizer? Foi  com as pessoas de olhos escuros que dividi o melhor e o pior da minha vida. Com elas partilhei minhas melhores risadas, minhas grandes dores, minhas realizações e frustrações. Minhas lágrimas mais sofridas, minhas alegrias mais intensas. Segredos. Meus maiores amores.
Tenho meus queridos de olhos claros, obviamente, mas em número significativamente reduzido.
Qual o segredo dos olhos escuros? Não quero desvendá-los, mas ainda assim imagino-os.
Sendo assim, dedico esse texto a vocês, meus queridos de olhos escuros.




segunda-feira, 12 de novembro de 2012

A herança que importa

"Ninguém mais tem o costume de se arrumar para ir a um bom restaurante".
Foi esta a frase que me motivou a escrever hoje, dita por meu irmão mais velho.
Direi o contexto.
Hoje comemoramos o aniversário de nossa mãe. Reserva feita num restaurante alemão elegante, as meninas foram se aprontar: tirei do armário um vestido novo, de bom corte e estampa delicada. Passei um bom perfume, completei com uma maquiagem suave. Mamãe também usou um vestido novo, pérolas e seu Chanel Nº 5. Nossa família pode não ser abastada, mas bom gosto sempre existiu.
Chegamos ao lugar: nossa mesa era perto da janela, e através dela podíamos ver os beija-flores no jardim. Tivemos um almoço agradável, conversamos sobre amenidades, tomamos um bom vinho, rimos. Mamãe estava radiante.
Enquanto isso, na mesa ao lado, alguns amigos beirando a meia idade se reuniam. Bebiam e falavam alto. Não eram, visivelmente, pessoas não acostumadas àquele tipo de ambiente. Ainda assim, algo neles destoava do lugar: "as mulheres parecem competir para ver quem tem a saia mais curta", comentou minha cunhada. "E os homens, a camisa mais feia", eu deveria ter completado.
De qualquer maneira, tínhamos assuntos mais interessantes, e este logo foi deixado de lado.
Porém, mesmo depois de voltarmos para casa, não pude deixar de pensar que, de fato, meu irmão está certo: as pessoas perderam o costume se de arrumar para ir a certos lugares. Usam uma minissaia ou uma camisa caras e sentem-se bem vestidas, esquecendo que não é isso que as torna mais finas.
A real finesse tem muito mais a ver com a maneira de comportar-se, a delicadeza, os modos. Talvez por isso algumas pessoas não frequentem lugares mais refinados: por saber que não saberão se portar.
Como se vestir da maneira correta, saber quais as taças certas para vinho ou água, usar o guardanapo adequadamente e ainda parecer natural, e não alguém interpretando um personagem caricato? Difícil, não?
Não se vier de berço. Às vezes, penso que, se a estabilidade financeira se conquista, o refinamento talvez seja algo que não pode nunca ser conquistado, e que nada tem a ver com o volume de uma conta bancária ou treino persistente de boas maneiras (personagens, personagens).
Recentemente, me espantei ao me contarem que uma determinada pessoa me invejava, assim como ainda estranho quando alguém antipatiza imediatamente com a minha pessoa, sem nenhum motivo razoável. Questionei internamente o por quê disso durante um bom tempo, até que, ao exteriorizar minha dúvida, recebi em troca uma outra questão: "Você deveria se perguntar se realmente não tem nada que possa causar essa reação".
Então, eu pensei. E pensei.
E apenas hoje, depois de um almoço em família, entre taças de vinho branco e amenidades, me ocorreu o que, talvez, seja a resposta: apesar de não haver nascido em berço de ouro nem ser herdeira de nenhuma fortuna, nunca precisei de roupas mínimas para chamar a atenção. E sei exatamente o que fazer com o guardanapo num bom restaurante.

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Desabafo. Ou...

Há muito deixei de buscar refúgio em lugares. Para mim, nada mais são do que recortes no espaço, onde não é possível encontrar qualquer conforto. Por si só, um lugar não é nada, a menos que esteja impregnado com as melhores lembranças.
Mais do que em lugares, busco refúgio nas pessoas. Não no abraço, no cuidado, na proteção que aprisiona a tantos numa dependência lamentável. O que me reconforta, frequentemente, é a existência.
Não preciso possuir. Não preciso sequer de uma convivência estreita e intensa. Só preciso saber que aquela pessoa existe.
Que inusitado e formidável que alguém seja capaz disso: trazer consolo e esperança pelo simples fato de existir. E quão raros são esses seres, capazes de tal pureza que sequer se reconhecem como o bálsamo que que renova a crença de que, talvez, o mundo não seja um lugar tão hostil assim.

Sendo assim, nesta alta madrugada, me recolho, mas não sem antes registrar as seguintes palavras: obrigada por existir.













sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Luz para as trevas, trevas para a luz

"Você tem um sorriso tão lindo por algo tão besta".
Não, não um sorriso. Uma risada. Uma risada linda, por algo absolutamente estúpido. Seria ridículo, não fosse encantador.
O que você diria se soubesse o quanto penso naquele momento, o exato momento em que você riu pra mim, pra logo em seguida se virar e ir embora? Mas você nunca vai saber.
Ainda assim, é esse momento que busco na memória quando sinto que dei toda a minha luz para o mundo, e não guardei nenhuma luz para mim.
É esse o inevitável não é? Que eu tenha de buscar a luz sempre nas lembranças, pois minha luz própria é ofertada a quem necessita, mas nenhuma me é dada em troca.
"Você terá muitos amores, pois precisa dividir sua luz com muitas pessoas", foi o que me disseram uma vez. Por coincidência, destino, escolha inconsciente, auto-sugestão ou o que for, assim o é. A luz que tenho divido com quem necessite dela. Mesmo com os não merecedores. Quanto a mim... restam-me as lembranças.

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Passionalmente.

Sou uma criaturinha voluntariosa. Desde muito cedo, ouço minha mãe me lançar acusações como "Você só faz o que quer", ou "Você sempre consegue tudo o que quer". A primeira sentença é absolutamente verdadeira.
Que direito tenho eu de sentir-me ofendida por uma acusação que reconheço ser justa? De fato, faço apenas o que me agrada.
A maioria dos meus atos virtualmente incompreensíveis, aparentemente impensados ou moralmente questionáveis não possui nenhuma explicação profunda ou racional. Faço-os porque quero e poucas vezes sou questionada a respeito deles. E se o fosse, provavelmente minhas respostas se resumiriam a um simples "Porque eu quis". Sem nenhuma explicação racional.
Não funciono à base de racionalidade. A racionalidade não me impulsiona, não me inspira, não me desperta o menor interesse pela vida sob sua filosofia.
Sou, fundamentalmente, movida a paixão. Ainda que meus atos passionais me traiam, é por causa deles, e somente deles, que encontro forças para me levantar a cada dia. Inconsequentes, inocentes, sedutores, e irresistíveis. Irremediavelmente românticos. Assim são os impulsos que sigo quase inconscientemente e que me fazem viver e acreditar em algo que está quase totalmente esquecido. Algo insubstancial e fugaz, a que não consigo abandonar, pois fazendo isto estaria negando minha própria fonte de vitalidade.
E é assim, passionalmente, que agora escrevo.
Certa feita, anos atrás, uma pessoa cujo nome não me darei ao trabalho de mencionar me disse que não me via como uma mulher tradicional, de vida estável, casada e com filhos. Me via mais como uma escritora inspirada pela melancolia, sentada em um café usando uma boina, fumando um cigarro e contando histórias de meus vários amores. E achei que essa perspectiva era, estranhamente, muito mais romântica do que a primeira.
E hoje, embora não tenha trabalhado diretamente nesse sentido, vejo que é exatamente o que me tornei: uma escritora sem dinheiro, sentada num café, rememorando passagens de uma noite tórrida e vasculhando lembranças de amores recentes. Tragicamente, não uso minha boina de couro marrom nem fumo; a boina foi  perdida anos atrás, e o fumo, proibido em ambientes fechados, para a minha infelicidade e a daqueles que, como eu, eventualmente desejam um cigarro para aclarar as ideias em momentos de inspiração.
De qualquer maneira, essa é a história, ou um fragmento dela. A minha história. Sendo escrita aqui, neste exato momento, enquanto termino meu café e desejo apenas duas companhias em todo o mundo e desejo que mais alguém deseje a minha. Sendo escrita como escrevo meus textos - passionalmente. "A paixão flui através dela como um rio de sangue". E é esse rio de vida que continua me sustentando. Sempre voluntariosa; sempre no meu caminho. Sem desistir dos meus ideais, enfrentando o que ou quem quer que seja. Passionalmente.

sexta-feira, 13 de julho de 2012

Sentimentalidades

O grande infortúnio daquela noite era: o casaco dela não tinha bolsos. Caminhava pelas ruas irregulares com as mãos ao lado do corpo, balançando no ritmo das passadas, e se sentia estúpida e gelada. Se tivesse bolsos, enfiaria as mãos bem no fundo deles, não tinha dúvidas.
Ela é esse tipo de pessoa que se aborrece com pequenos detalhes. Nunca com as coisas grandes, às quais o resto do mundo conferiria importância fundamental. São os pequenos detalhes que sempre lhe chamam a atenção, é deles que faz seus dramas diários. E o drama daquela noite era: seu casaco não tinha bolsos, e suas mãos estavam geladas.
Mas não vamos falar sobre bolsos ou mãos geladas. Mãos geladas são sempre assunto enfadonho. Antes poderíamos discursar sobre mãos quentes, acolhedoras e seguras, mas também não seria um bom assunto. Ninguém quer ler sobre mãos, quaisquer que sejam suas temperaturas.
Então vamos falar sobre você e ela, e tudo o que não existe entre vocês dois.
Suponha que algum dia você vá conhecê-la. Provavelmente, irá vê-la pela primeira vez em um desses cafés do centro, sentada em uma mesa externa, às voltas com um cachecol comprido num dia de vento forte. Os cabelos escuros emaranhados pelo vento, as faces levemente coradas pelo frio, a expressão de tédio. Vai imaginar se ela está sozinha, ou se está esperando alguém.
A segunda vez em que a vir será exatamente no mesmo lugar, porém ela estará com alguns amigos, rindo e falando alto. Ela vai parecer bem diferente assim. Os olhos cor de mel parecerão mais brilhantes mesmo de longe, o rosto, mais iluminado, e mesmo que você não consiga entender sobre o que ela fala, parece ser muito articulada. Uma mulher interessante.
Na terceira vez, você é finalmente apresentado a ela por um amigo em comum. Não vamos definir lugar ou ocasião, mais tarde você não se lembrará mesmo, e no fundo não fará diferença. A lembrança que ficará será a dos olhos dela, que expressão era aquela mesmo? Na época, você pensou que era de doçura pura e descomplicada, mas hoje sabe que não é bem assim. Há um oceano inteiro por trás daqueles olhos, e ninguém nunca chegará até o fundo sem se afogar.
Sem saber por que, ela gostará de você e aceitará seu convite para um jantar. Você a levará no melhor restaurante, pedirá o vinho mais caro, e ela rirá dos seus esforços: nada disso faz diferença pra ela. Coisas grandes demais, lembra? São as sutilezas que capturam sua atenção. Como aquela mecha de cabelo caindo nos seus olhos quando você a deixou no portão de casa. Uma fortuna num jantar, horas e horas tentando impressioná-la, é quase irritante que ela tenha sido fisgada por algo tão banal quanto uma mecha de cabelo. Ela vai passar algum tempo apenas olhando, criando coragem, e então vai estender a mão para afastar o cabelo dos seus olhos. Logo depois disso, você tentará beijá-la, e ela permitirá. Você a sentirá levemente trêmula nos seus braços, sentirá que ela tem cheiro de flores e gosto de hortelã, e então estará perdido.
Ela não é o tipo de mulher provocante, mas costuma atrair alguns olhares. Isso te fará remoer um ciúme amargo, e ela achará graça disso. Então ficará furioso, e ela apenas sorrirá pra você, balançando a cabeça sem dizer nada. Este será o hábito dela que você mais detestará. O que você nunca vai saber é que ela não ri de você, nunca riu de você de verdade. Ela ri do absurdo do seu ciúme. Ri porque ela está com você porque ela quer, e não porque você assim deseja, e isso faz toda a diferença do mundo. Ela já teria partido se quisesse: nada a impede de te deixar. Mas ela fica porque quer, é por isso que você não deveria se preocupar, não vê o quanto é desnecessário? Mas há certas coisas que ela nunca fala, como quantas horas por dia passa pensando em você, ou como olha para o relógio o tempo todo quando sabe que vai te encontrar. Esses são seus pequenos segredos.
E vocês irão brigar com certa frequência; nada grave, apenas mágoa passageira, não significa que são incompatíveis. Acontece que ela vai aonde quiser, e você é controlador. Ela não faz por mal: apenas aprendeu a ser assim. Brigas bobas.
Entretanto, de vez em quando você a fará chorar. Propositalmente ou não, algum dia irá dizer algo (uma coisa pequena, certamente) que partirá o coração dela. E então ela não vai discutir, nem começar uma briga: irá chorar sozinha, sem som, apenas as lágrimas rolando pelo rosto, quem sabe um soluço de vez em quando. Você nem vai saber.
Não será fácil, pois ela costuma fazer só aquilo que quer. Porém, vai valer a pena, se o que você deseja é uma companhia silenciosa. Ela é ótima nisso: ficar horas e horas ali, lado a lado, em silêncio. Também é boa para conversar,  pode ouvir todas as histórias da sua vida e contar as da vida dela.
Mas são as conversas silenciosas que mais irão te marcar. É disso que sentirá mais falta quando terminar, porque tudo algum dia termina. Não é drama desta vez: é simplesmente o inevitável. Algum dia, vocês se magoarão irreversivelmente. Ou então, simplesmente não se amarão mais. "Ainda podemos ser amigos?", você perguntará. "Eu não quero", será a resposta dela. Assim, sem qualquer explicação racional. Ela está longe de ser um ser racional. É antes totalmente guiada pela paixão, pelos sentimentos e vontades. Um serzinho passional e voluntarioso. E você a adora, exatamente assim. Mas já é tarde.
Ou talvez nada disso aconteça. Talvez você só a veja aquela primeira vez, no café, tentando domar o cachecol que se rebela ao vento. E ela nem é assim tão bonita, só meio estranha, quem sabe seja apenas isso que a faz atraente. Você a olha, mas nem pensa em parar para falar com ela. Continua seu caminho a passos largos. E nunca mais a vê.


quarta-feira, 11 de julho de 2012

Languidez, memórias e umas doses de rum

Acordou com Ella Fitzgerald cantando "Summertime", mas não era verão. A brisa fria da noite de inverno entrava pela janela, passava pelo dossel e fazia a pele de Elisa arrepiar-se de maneira quase sensual. A brisa era um amante melhor do que muitos homens e, sentindo seu toque, Elisa esticou-se na cama e espreguiçou-se como uma gata lânguida que recebe um afago.
"Lânguida" era um adjetivo perfeito para descrever a mulher estirada molemente sobre os lençóis de algodão e edredons macios: voluptuosa, melancólica, frouxa em seu lento despertar. Lânguida.
Por um instante, pensou em aninhar-se novamente nos lençóis e entregar-se mais uma vez ao sono. Mas não podia, tinha de encontrar alguém.
Levantou-se e, deixando a proteção do dossel, sentiu o corpo estremecer com a friagem úmida que entrava pela janela e quase não encontrava barreiras para chegar à sua pele: Elisa dormia em roupas ínfimas, mesmo nos dias mais frios. E naquele dia, depois de sair do banho e antes de abandonar-se na cama de dossel, havia escolhido apenas uma leve camisola de seda rosa pálido para cobrir sua nudez.
Entretanto, a noite invernal não lhe permitiria tais trajes. Vestiu-se. Passou os dedos pelos cabelos embaraçados; não era adepta de escovas, preferia suas medeixas em selvagem desalinho. Amarrou bem firme as botas de cano alto, jogou por cima de tudo um trench coat preto e enfiou um maço de cigarros no bolso: estava pronta, elegantemente displicente.
Saiu de seu prédio na Rua Augusta e tomou seu caminho rumo ao bar de sempre. Enquanto caminhava, ouvia os gracejos dos seguranças dos bordéis da Baixa Augusta, elogiando suas pernas. Tinha belas pernas, sim, torneadas pelos degraus que subia todos os dias até o terceiro andar, pois em seu prédio antigo não havia elevador. Caminhava com passos lentos e gingados. Não se apressava, pois não perseguia nada e, mesmo que perseguisse, naquele lugar jamais iria encontrar.
Aquele era o lugar dos boêmios, das prostitutas, dos artistas frustrados e da classe média que, inconformada por ser simples classe média, buscava na decadência algo que conferisse algum charme às suas vidas vazias.  Mas Elisa não era nenhuma dessas figuras. Era apenas Elisa, e não buscava nada.
Chegou ao seu destino: um dos piores botequins de toda a rua, o balcão meio engordurado, um bêbado em uma das mesas. Mesmo assim, o lugar estava lotado de jovens bem apessoados usando roupas bonitas e cortes de cabelo da moda. A última moda era ostentar a decadência.
Elisa entrou, pediu uma dose de rum e sentou-se na última mesa disponível na calçada. A noite estava fria, mas ela queria acender um cigarro. Fumava sempre cigarros de cravo, e depois chupava balas de canela para tirar o gosto de cinzeiro da boca. Era esse o gosto que sentiria quem a beijasse: de cravo e canela.
Tragava lentamente e soltava a fumaça de maneira suave, formando uma nuvem cinza e preguiçosa à sua frente. Entre uma tragada e outra, pensava na pessoa que esperava no momento: um amigo apenas, embora algo lhe dissesse que poderia terminar a noite na cama dele, ou com ele na dela, tanto fazia. Uma noite fria não é uma boa ocasião para se dormir só.
De dentro do bar, vinha o som de uma conhecida canção de metal. "I can't remember anything, can't tell if this is true or dream..."
E enquanto tragava seu cigarro doce e esperava o homem que talvez a aqueceria naquela noite, fosse com uma conversa, fosse com seu corpo, uma lembrança lhe veio à mente: a lembrança de outro homem, que um dia havia lhe contado uma história que ela jamais esqueceria.

***
Ele tinha penas doze anos na época, e como todo menino de doze anos vivendo em uma cidade do interior, dividia seu tempo entre a escola, as brincadeiras ainda infantis nas ruas e algumas revistas pornográficas que um colega pegava entre as coisas do pai. Uma criança, apenas.
O pai trabalhava o dia inteiro em uma metalúrgica. A mãe fazia doces e bolos sob encomenda, os melhores da cidade, diziam. O trabalho lhes tomava a maior parte do tempo, mas o menino não ligava, tinha os amigos da rua com quem andar de bicicleta e jogar futebol.
Porém, sem ter quem acompanhasse seus deveres escolares, as notas começaram a cair. O pai ficou furioso. Esperava que o filho fosse a primeira geração da família a frequentar uma universidade, e para isso ele tinha de estudar desde cedo, nada de notas baixas.
Um dia, a mãe apareceu com uma novidade: ele teria um professor particular. Homem de família tradicional, seríssimo, formado com excelência, longos anos de carreira e ótimas referências. Além disso, muito religioso. A mãe ressaltava essa última qualidade acima de todas as outras. Seria caro, sim, mas eles poderiam apertar o cinto por uns tempos, os estudos do menino eram mais importantes.
Então, começaram as aulas. Duas vezes por semana, ele ia da escola direto para a casa do professor, não era muito longe, só algumas quadras. Estudava matemática, ciências e português. E, quase no fim do período, o professor lhe dava lições de religião. Eram essas que ele mais detestava.

***

Elisa respirou fundo. Aquela era uma história que nunca abandonava seu pensamento por completo, mas não sabia exatamente por que havia lhe ocorrido justo ali, naquela mesa na calçada, naquela noite de inverno. De dentro do bar, a mesma música ainda ressoava: "Hold my breath as I wish for death, oh please God help me".

***

No quarto do professor, ele se sentava na beirada da cama enquanto ouvia as lições. O professor falava sobre o pecado carnal. Dizia que todo homem e toda mulher, sendo fruto de união carnal, nascem em pecado e vivem em pecado. E o flagelo do corpo e o estudo do divino eram as únicas maneiras de livrar o espírito da danação eterna.
Então o professor o fazia se despir e deitar de bruços, enquanto colocava uma bíblia em suas mãos e o obrigava a ler passagens em voz alta, mas a dor era imensa, e ele engasgava e não conseguia se concentrar, o que tornava tudo pior, pois o professor se zangava e o repreendia, segurando-o mais forte, machucando sua carne de menino. Nessas horas ele tentava pensar nas mulheres nuas nas revistas, imaginar que era alguma delas ali com ele, ensinando-lhe as lições ao invés do professor. Entretanto, ele aprendera recentemente que isso também era um pecado, e ele merecia ser punido, então se esforçava para manter o foco na leitura e na dor, na leitura e na dor.
Aquele era o ensinamento e a punição, e também o segredo. "Caí no escadão que desce até a rua do professor", ele diria mais tarde à mãe, quando indagado sobre os hematomas no corpo jovem. E a mão ralharia com ele; mas que menino desastrado ele era, nunca prestava atenção por onde andava, sempre com a cabeça na lua, se fosse mais atento iria bem na escola e ela não precisaria gastar aquela fortuna com as aulas particulares.


***


Elisa não se recordava muito bem da ocasião em que ouvira aquela história pela primeira vez, nem do contexto. Por um momento, pensou que o homem que a contara estivera bêbado, mas depois lembrou-se de que ele não era afeito às bebibas. Mas o que mais levaria alguém a revelar um segredo tão profundo, tão íntimo, aprisionado durante anos no limbo entre a lembrança e o desejo do esquecimento? Ela não sabia, nem tentaria entender.
Através da nuvem de fumaça com cheiro de cravo, seu olhar era lânguido e introspectivo. Poderia-se comparar seus olhos aos de Bette Davis, se tivesse olhos maiores. Mas Elisa tinha olhos pequenos, talvez mais como os de Greta Garbo. Fazendo-se justiça, talvez fosse uma mistura das duas: olhos de Bette Garbo.
Levantou-se e foi buscar mais uma dose de rum. A música agora chegava ao fim, aquela música que ela conhecia tão bem. "Taken my soul, left me with life in hell". Virou a dose, olhou o relógio. Sua companhia estava atrasada. Alguns minutos apenas, mas ela não era mulher de esperar. Pagou a conta, enfiou as mãos bem fundo nos bolsos do casaco e seguiu seu caminho pela noite. O casaco preto, as botas pesadas e os passos, agora mais rápidos e firmes, davam a ela um ar quase intimidador. Não que fosse de fato intimidadora, mas por hora precisava sustentar essa postura. Uma garota precisa se defender hoje em dia.













domingo, 8 de julho de 2012

Seis quase histórias em seis canções

I - Lise


"Que veux-tu que je lui dise
Elle fait tout de travers
Elle fonctionne à l'envers
Sous ses airs de marquise


Les vers de Lise
Se lisent autour d'un verre"

Esteve chovendo a noite toda, e em algum lugar de sua mente a chuva continua caindo, fraca porém incessante. 
Ela escreve versos, mas nunca os mostra a ninguém. Não são versos para serem lidos em saraus, lugares refinados ou qualquer lugar onde elites supostamente intelectuais se reúnam, vestindo suas roupas elegantes e sustentando seus olhares blasés. Seus versos combinam com a mesa de um boteco sujo, onde pessoas de vida desregrada se encontram, todos levemente desesperançosos, lamentando sua má sorte e os preços das bebidas.
Ainda assim, dizem que ela parece uma princesa, ou uma marquesa, ou o membro de qualquer família imperial. Ela não entende o que querem dizer, então responde a isso com um leve sorriso de aceitação.

II - Rattlesnakes

"She looks like Eve Marie Saint
In on the waterfront, she says
All she needs is therapy
All you need is love, is all you need"

O papel é mais paciente do que as pessoas, então ela escreve. Escreve noite afora, enquanto vê as luzes do prédio à frente se apagando aos poucos. As pessoas vão dormir, mas ela não tem sono. Escrever é um descanso melhor. Talvez devesse conversar com alguém, mas não há com quem conversar.
O papel é paciente, mas não costuma dar conselhos, então ela vai à terapia e tenta se convencer de que é o melhor que pode fazer.
Porém, nas noites em que o papel não chama, faz frio e todas as luzes dos outros apartamentos já se apagaram, ela pensa que poderia trocar as sessões de terapia e os remédios por alguém pra abraçar.
Infelizmente, não se pode ter tudo.

III- All nightmare long


"Cause we...
Hunt you down without mercy
Hunt you down all nightmare long"

Os braços da mulher foram arrancados, ela não tem chance nenhuma de se defender. É violentada com brutalidade, depois suas pernas são amputadas e colocadas dentro de um forno, e então a mulher é forçada a provar a própria carne antes de ser colocada ainda viva para assar.
***
Ela acorda assustada, mas não é o pesadelo que a assombra. Ela pensa em como seu inconsciente pode ter criado tal cena, e em que tipo de demônios internos deve carregar para que isso seja possível. 

IV - Enjoy the silence

"Words like violence
Break the silence
Come crashing in
Into my little world
Painful to me
Pierce right through me
Can't you understand
Oh my little girl"

Ela não tem tudo o que sempre quis em seus braços, e está muito longe de conseguir isso. Porém, é preciso que se tenha algo de precioso para que se levante todas as manhãs, e a liberdade é seu maior tesouro. Valoriza a liberdade de expressão, sim, mas mais do que isso, quer sua liberdade de simplesmente ficar em silêncio. Em sua mente, parece estranho ter de lutar pelo direito de calar, mas já deveria estar acostumada à estranheza do mundo. O mundo é mesmo um lugar hostil.

V - Wherever I may roam

"Rover, wanderer

Nomad, vagabond

Call me what you will"

Qualquer lugar é um lugar para quem não pertence a lugar nenhum. Três lugares numa mesma frase, e ela não está em casa em nenhum deles. Há aqueles em que se sente bem, em que pode descansar e ficar por algum tempo, mas sabe que não é o seu lugar. Então, ela aproveita o lugar onde estiver no momento, dorme onde precisar e continua vagando. Gosta da liberdade de vagar. E mesmo que não gostasse, não há muita escolha. Assim, tenta fazer isso da melhor maneira possível. E a melhor maneira é seguir em frente e tentar não se importar.

VI - Song of myself

"All that great heart lying still

In silent suffering

Smiling like a clown until the show has come to an end
What is left for encore
Is the same old dead boy's song
Sung in silence"

Às vezes, no meio da noite, quando ainda não adormeceu e não sente vontade de escrever, quando não está em uma mesa de bar ou dormindo em algum lugar que mal conhece, ela pensa no amor, na inocência e na grande solidão do mundo. Imagina se, em algum lugar, há alguém que se sinta como ela, e se pergunta se duas pessoas pessoas que não pertencem a lugar nenhum podem pertencer uma à outra.
Mas no fundo, ela já conhece essa resposta.

sábado, 7 de julho de 2012

De como entender um gato



Deitado confortavelmente sobre uma almofada macia, ronronando como se não tivesse nenhuma preocupação e o mundo existisse apenas para lhe servir, há um gato.

Um gato é, sob qualquer cinscunstância, um animal peculiar. Nem doméstico nem selvagem, transita entre estas duas definições sem que nunca possa ser acertadamente definido.

Um gato não precisa de definições. Ele é gato, e isto basta. Passa o tempo tão ocupado em ser simplesmente um gato que não finge ser nada além disso.

Mas dizer que um gato é "simplesmente um gato" não o torna um animal simples, veja bem. Ele é um ser bastante complexo, e por isso tão poucos o compreendem.

Antes de qualquer coisa, o gato é livre. Mesmo o mais doméstico e caseiro dos gatos. Sim, pois se ele deita-se no seu colo, esfrega-se em suas pernas, toma sol na sua janela e bebe o leite que você lhe oferece, não é porque ele não tenha outra escolha. Ele apenas quis assim. E não venha me falar de portas fechadas e janelas com telas de proteção. Nenhuma porta ou tela pode prender um gato quando ele decide que deve partir.

Um gato sempre fica por vontade, não por precisão. Ele não tem precisão de um dono, ou uma casa, ou uma almofada macia, ou um pires de leite. Ele pode viver absolutamente bem sozinho. Pode dormir em cima de uma árvore e caçar um pobre passarinho para matar a fome.

É isso que faz do gato um ser especial: o fato de poder partir a qualquer momento, mas mesmo assim decidir ficar. Ele fica pela almofada, sim, e pelo pires de leite e pelo pote de ração diários. Fica pela mão afetuosa que afaga seus pelos macios e pelo colo onde sabe que sempre pode repousar.

Ainda assim, mesmo que tenha decidido ficar, às vezes o gato necessita de sua solidão. Então, quando ele quiser sair do seu colo, deixe-o ir. Não tente prendê-lo à força, ou pode sair arranhado. Não que ele faça por mal; é apenas sua maneira de defender o direito de ir.

Nesses momentos, o gato provavelmente irá procurar um telhado, e pode ser que não seja o seu. Talvez ele precise de um telhado mais alto, de onde a cidade pareça menor e as estrelas, mais próximas. Ou talvez ele deixe o telhado de lado e se enfurne em algum beco escuro e suspeito, onde você mesmo não teria coragem de ir. O gato não sustenta a coragem por orgulho - é apenas a sua natureza.

Entretanto isso não significa, absolutamente, que o gato não seja orgulhoso. Pelo contrário: ferir o orgulho felino, propositalmente ou não, é algo que sempre acarreta consequências. O gato pode te arranhar, ou chiar mostrando os dentes. Pode te morder, sair correndo e passar muito tempo sem lhe dar atenção. Ou pior: ele pode ir embora, sem nada que você possa fazer para impedi-lo.

Calma, não se assuste. Um gato não vai embora assim tão fácil. A lembrança do afago, do leite e da almofada são de grande peso para que ele perdoe e fique. Afinal, não precisar dessas coisas não quer dizer que não as aprecie. E não precisar de você não quer dizer que não o tenha em alta conta.

Além disso tudo, o gato é um animal voluntarioso. Faz o que quer e quando quer, e dificilmente você conseguirá convencê-lo a não fazer. É também exigente: exige receber carinho e alimento sempre que quiser, afinal provê-los é sua obrigação.

Não negue essas coisas a um gato. Ele saberá retribuir ao seu próprio modo, que pode não ser o que você espera, mas certamente será compensador. Retribuirá subindo em seu colo em uma noite fria e te ajudando a se esquentar. Ou talvez lamba sua mão para que você saiba o quanto ele te considera. Ou ainda, quando você estiver cansado e triste, assim, sem que você diga uma palavra, ele virá até você. Não subirá no seu colo nem lamberá sua mão; apenas ficará ao seu lado em silêncio, e você saberá que não está sozinho no mundo.

Esse é o jeito gato de ser.

sexta-feira, 6 de julho de 2012

Raios de sol de sexta-feira

Ainda não passa da uma hora da tarde de uma sexta-feira ensolarada, e já estou bêbada. Meu corpo está agradavelmente quente; as roupas são quase um incômodo. Minhas mãos estão um tanto dormentes, meus cabelos meio despenteados. Não é fácil manter os olhos abertos.
Enquanto meu corpo encontra-se docemente amortecido, um sorriso involuntário brinca no meu rosto.
Estou embriagada de raios de sol.

terça-feira, 26 de junho de 2012

O sonho, o dente, o sangue e um texto um tanto sem sentido.

Dentre todas as maneiras de aliviar uma mente inquieta e um coração pesado, sempre acreditei que os sonhos fossem a mais eficiente.
Sonhamos e logo nos encontramos em um outro mundo, num verso onde tudo é possível, onde as mais incríveis fantasias são reais durante as - muitas vezes poucas - horas de sono.
Sonhamos e, por alguns preciosos momentos, os pesadelos da realidade são deixados para trás.
Mas o que acontece quando os sonhos deixam de ser uma fuga saudável de uma rotina cansativa e passam a ser fonte de inquietação e dúvidas? 
Há anos o mesmo sonho me persegue. Muda em detalhes circunstanciais, mas o mote é sempre o mesmo: estou perdendo um dente. E cai naturalmente, sem dor, como se fosse o dente de leite de uma criança. 
Há outra curiosidade a se notar. Até onde vão nossos laços familiares? Meu pai costumava ter o mesmo sonho. Se ainda o tem, acho que não saberei. Há tempos ele perdeu a capacidade de se recordar de certas coisas e ordenar determinados raciocínios. O que nos leva a sonhar com um tema tão peculiar?
Quando acordo do sonho, minha primeira reação é levar a língua a cada um dos meus dentes, certificando-me de que todos estão lá.
E esta noite, além do sonho já familiar, um sonho diferente veio me inquietar.
Eu estava em um local conhecido, grande e mal iluminado. Olhando para a porta, via que lá estava uma pessoa conhecida, apoiando-se no batente, fraca, mal sustentando-se em pé. Sangrava de várias feridas profundas. E eu me sentia... compadecida? Não é uma boa definição. Deixando de lado as descrições objetivas, eu me sentia com o coração partido. Porém, não havia nada que eu pudesse fazer a respeito, ainda que também fosse culpada por algumas daquelas feridas. Então, me limitava a observar.
Acordei no meio da noite, perturbada. A lembrança do sonho estava tão vívida que poderia ter sido real - talvez tenha sido real, em algum lugar. Pensei que, se voltasse a dormir, sonharia novamente com as mesmas coisas.
Assim que adormeci novamente, outro sonho incomum em envolveu. Não exatamente ruim, não necessariamente bom. 
Estranhamente, quando acordei pela manhã e vi o dia claro e sem nuvens, não me sentia mais perturbada pelos sonhos. Estes ainda estavam claros na memória, mas não incomodavam tanto. 
Neste momento, várias horas após o despertar, o que resta é uma doce melancolia.
Melancolia pelo homem que, apesar de ter os mesmos sonhos que eu, está separado de mim por uma barreira construída durante anos de desentendimentos.
Melancolia pela pessoa que sangra sozinha, pela qual eu nada posso fazer.
 Até onde os sonhos não passam de fruto do subconsciente e até onde eles nos servem como mensageiros, nos alertando sobre situações que não somos capazes de compreender à luz do dia?
Será que "tudo o que vejo, sou e suponho é apenas um sonho dentro de um sonho"?


A Dream Within A Dream

Take this kiss upon the brow!
And, in parting from you now,
Thus much let me avow-
You are not wrong, who deem
That my days have been a dream;
Yet if hope has flown away
In a night, or in a day,
In a vision, or in none,
Is it therefore the less gone?
All that we see or seem
Is but a dream within a dream.

I stand amid the roar
Of a surf-tormented shore,
And I hold within my hand
Grains of the golden sand-
How few! yet how they creep
Through my fingers to the deep,
While I weep- while I weep!
O God! can I not grasp
Them with a tighter clasp?
O God! can I not save
One from the pitiless wave?
Is all that we see or seem
But a dream within a dream? 
Edgar Allan Poe

domingo, 24 de junho de 2012

Um dia eu acordei...

... e a escrotidão humana era a nova moda.
Em especial entre o gênero masculino. Mas vejam bem, toda moda tem suas normas. Assim como não se pode fazer uma combinação aleatória de peças de roupa e ser considerado elegante, a escrotidão também tem de ser combinada com atributos específicos para que seja valorizada no conjunto.
E de todos os atributos, aquele que se mescla de maneira mais harmônica com a escrotidão é o cavalheirismo.
Combinar esses dois elementos não é tão difícil, nem requer grandes esforços. Para os garotos que quiserem  se arriscar, seguem aqui algumas preciosas dicas:
1- Nunca levante a voz. Demonstre sua maturidade e educação mantendo sempre o tom baixo e calmo.
2- Escolha sempre os melhores vinhos quando sair com uma mulher, mesmo que sejam muito caros.
3- Nunca faça comentários pouco elogiosos a respeito das pessoas, mesmo que não goste delas.
4- Nunca deixe a mulher pagar a conta, nem ao menos dividir. Um cavalheiro arca com todas as despesas da noite.
5- Conheça a família dela, os presenteie e os leve para jantar.
6- Sempre abra a porta do carro, ande do lado de fora da calçada e tire o chapéu em ambientes fechados.
7- Mande flores.
8- Mostre o seu capital intelectual sempre que puder, afinal cultura é essencial em um cavalheiro.
9- Tente ser sempre educado e demonstre humildade.
10- Trate bem as mulheres.

Caso siga corretamente estes dez passos, um homem certamente será considerado um cavalheiro. Talvez seja um tanto custoso no início, mas tudo na vida requer algum esforço. Para compensar, a escrotidão é muito mais simples de ser alcançada, como veremos a seguir.

1- Ofenda sem erguer a voz. Uma ofensa afeta muito mais quando dita em voz calma e de maneira totalmente intencional e é muito mais humilhante.
2- Deixe claro que ela mesma jamais seria capaz escolher um bom vinho, porque não é suficientemente refinada para isso.
3- Deixe claro que não suporta uma pessoa, mas continue tratando-a como a alguém querido. Hipocrisia é essencial para ser um escroto.
4- Durante uma discussão, sempre a lembre de tudo o que já pagou para ela. Você está pagando, então o mínimo que ela pode fazer é aturar todas as suas falhas.
5- Depois de conhecer a família dela, comente com sua própria família o quanto os achou inapropriados e inferiores.
6- Conte meias verdades, engane e utilize de desculpas não convincentes. Essas coisas certamente serão relevadas caso o passo n° 6 de "como ser um cavalheiro" seja seguido à risca.
7- Mande flores para distraí-la toda vez que a decepcionar. Assim será desculpado e você logo poderá desapontá-la novamente.
8- Use sua intelectualidade para demonstrar o quão superior você é.
9- Seja insuportavelmente arrogante, mas tente disfarçar com uma máscara de humildade. Afinal, humildade  também é sinal de superioridade.
10- Não se importe de partir o coração de uma mulher, desde que faça isso de maneira refinada.

***

Pois bem. Não tive hoje o que se pode chamar de um alegre despertar. Acordei com gritos e ofensas, felizmente não dirigidos a mim, mas que de qualquer maneira me afetaram quase como se fossem. 
Essas coisas me fazem quase querer abandonar crenças sobre as quais contruí as bases do meu caráter e valores que considero essenciais. Me fazem desacreditar que alguns dos meus desejos mais profundos algum dia se realizarão.
Felizmente, ainda há três, apenas três homens em minha vida que fazem com que minha fé na humanidade se mantenha num nível suportável. Três amigos que me fazem crer em espíritos realmente gentis. 
Por um deles, o coração ainda insiste em descompassar, por mais que nunca possa haver nada. A amizade é algo mais sagrado do que qualquer outra coisa, e uma vez instalada, dificilmente se transforma em outro sentimento. 
Os outros dois poderiam ser irmãos mais velhos, uma vez que nunca poderei contar com aqueles que o sangue me deu.
É a isso que ainda me apego, embora não seja o suficiente .Nunca nada é suficiente...

sábado, 23 de junho de 2012

A noite que não deveria ter sido

A noite deveria ter sido reconfortante. Uma companhia conhecida, um cobertor quente, um belo filme. Deveria ser um alívio ao fim de uma semana triste, permeada por angústias, dúvidas, arrependimentos e receios. Uma noite de descanso.
Começou bem. As coisas sempre começam bem. No início, todos são bons, pois é assim que desejam ser vistos.
Mas quando as luzes se apagam, os corpos se aproximam e o desejo ferve, a besta interior sente necessidade de mostrar as garras, exterioriza-se e toma conta da cena.
E então as mãos que deveriam afagar ferem, o desejo se torna pânico e a entrega se transforma em posse.
Se ao menos pudesse haver compreensão entre dois seres...
É difícil escapar. Finalmente, o que resta é mágoa, decepção e algumas leves dores.
Comportamento justificável? Não. Certas coisas podem até ser perdoáveis, mas nunca justificáveis.
E assim, mais uma ferida se abre na alma. Mais uma porta para a insegurança. E a descrença, antiga conhecida, dá mais um passo em direção a uma cidade fantasma interior, até o dia em que encontre ali uma moradia, decore-a com retratos daquele amor perdido e com fragmentos de memórias de dias melhores e decida instalar-se definitivamente.

                                                            Ophelia, Alexandre Cabanel.

quinta-feira, 21 de junho de 2012

Linhagem - Engenheiro Eusèbe Stevaux, o primeiro da família a chegar ao Brasil

 

Família, descendência, hereditariedade e genética. Que coisas curiosas. Não é incrível notar como os membros de uma família podem ser impressionantemente parecidos entre si?
Quando olho para o retrato de Eusèbe Stevaux, o primeiro Stevaux a chegar ao Brasil, ainda no século XIX, tenho a impressão de que estou olhando para o rosto de meu avô, seu descendente direto.
Stevaux têm tudo a mesma cara, minha mãe costuma dizer.
 E não é essa a beleza do parentesco? Quantas pessoas podem traçar sua linhagem até o séc. XIX? Aliás, quem se importa em tentar traçar as linhas, muitas vezes emaranhadas, que guiam até a origem de uma família, descobrir suas histórias?
Minha família é cheia de histórias... como aquela que conta que, misturado ao sangue francês burguês, há um pinguinho de sangue real italiano, ainda que por meios tortuosos.
Mas essa já é outra história, para um outro post.

A história completa de Eusèbe Stevaux pode ser lida neste link, do Arquivo Histórico Municipal.

http://www.arquiamigos.org.br/info/info23/i-estudos.htm


quarta-feira, 20 de junho de 2012

A noite, o silêncio, o quarto escuro e todas as coisas que dali vêm

Há uma noite. Há um quarto. E há um homem.
A noite é silenciosa, o quarto é escuro e o homem é solitário.
Por muitas noites, através de longos anos, ele esteve naquele quarto. E por muitos anos as noites foram silenciosas e solitárias. Com exceção de algumas.
Em algumas noites particularmente silenciosas, quando a solidão é demasiado grande e o quarto está especialmente escuro, ele grita.
Grita palavras desconexas e os nomes das pessoas que ama. Geme e ruge.
E grita por socorro.
Qual o motivo para que grite por socorro? A cama está quente, ele está bem alimentado e fisicamente seguro. Nenhum mal pode acontecer a ele.
Nenhum mal, senão aqueles que remói dentro de si mesmo: as lembranças de todos os erros que cometeu durante uma longa vida, os rancores acumulados durante os anos, a solidão que atraiu para si, as memórias de todos aqueles que abandonou. Males que intensificam a escuridão do quarto.
Então, ele grita. Algumas pessoas o escutam, inclusive eu.
Alguém vai até ele. Ordena que se cale. Grita ainda mais alto, e esses gritos são ofensas e ameaças. Bate a porta estrondosamente.
Esse alguém não entendeu o motivo dos gritos, mas eu entendo. O homem no quarto quer ser ouvido. Quer saber que ainda possui uma influência no mundo; quer ter certeza de que ainda tem uma voz e que alguém ainda se incomoda ou se importa com ele. Quer saber que está vivo.
Entretanto, apenas observo; escuto os gritos, mas não os atendo. Sinto-me impotente.
Entre tantas coisas que eu poderia desejar, desejo que pudesse fazer alguma diferença nesse cenário. Talvez eu faça, mas não o suficiente.
Assim, o que me resta é oferecer a certeza de que, por mais que o quarto esteja escuro durante a noite, em alguma manhã estarei na porta com meu sorriso melancólico (porém sincero) e, embora eu não diga nada, ele vai saber o que quero dizer: Não precisa gritar, estou te ouvindo muito bem.

terça-feira, 19 de junho de 2012

Blasélandia

Superficialidade, hipocrisia e falsidade mascaradas sob belas palavras e gestos delicados, utilizados com distinta arrogância e ares de superioridade para esconder um imensurável complexo de inferioridade.
Assim é o povo da Blasélandia.

sexta-feira, 8 de junho de 2012

Décadence sans elegance



Acordar cedo em dias frios e chuvosos deveria ser proibido por lei. A pessoa acorda com o despertador tocando, vira-se na cama e volta a dormir. Levanta-se atrasada para o trabalho e, chegando lá (molhada e com frio), vê-se sozinha em uma sala, a observar a chuva pela porta aberta.
Vai ser um dia parado, então o que resta é escrever. A cena ficaria mais completa com uma caneca de café ao lado. Mas eu não bebo café.
Na tentativa de escrever, me voltam à mente as coisas nas quais tenho pensado nos últimos dias. E recentemente tenho pensado na decadência. Bem, não exatamente na decadência em si, mas em como parece ter se tornado um estranho e recorrente hábito as pessoas se esforçarem para parecerem elegantemente decadentes. Decadence avec elegance? Não vejo beleza, nem graça, nem atrativo nenhum nisso, honestamente.
Talvez pelo fato de que eu mesma não precise forçar decadência nenhuma. Observo essa decadência na minha família há anos, e não tenho nenhum apreço especial por ela.
Vejo o que somos hoje, em comparação com as histórias que contam sobre o que fomos um dia. E o cenário atual me parece por demais melancólico.
Lembro do quadro para o qual olhei por mais tempo quando visitei a Pinacoteca do Estado. Estava na sala de retratos masculinos, e na legenda lia-se Eusébe Stevaux. O primeiro da família a chegar no Brasil, um engenheiro francês que deixou algumas obras por São Paulo, um viaduto com seu nome e um retrato num lugar importante, que viria a ser o orgulho da família. Ninguém mais vai até lá para ver o retrato, entretanto.
Mentalmente, abro o guarda-roupas e encontro o casaco de pele de coelho que pertenceu a minha avó paterna. A pele é verdadeira, impressionantemente macia e bem conservada apesar de ter pelo menos setenta anos de idade. Quanto deveria valer uma peça dessas nos anos quarenta? Não pouco, certamente.
Penso na mulher que a vestia. Que bela mulher ela era, sempre de saltos altos, esmalte e batom vermelhos, o cabelo impecável. E não usava bijuterias. Brincos, pulseiras, colares, tudo era de ouro verdadeiro. Até um relógio inteiro de ouro. Lembro do rosto dela num retrato antigo. Era realmente linda, e penso que gostaria de me parecer mais com ela.
Não lhe era permitido trabalhar, mas financeiramente não havia necessidade; o marido lhe dava tudo o que quisesse, assim como o dava aos três filhos.
 A única menina fazia aulas de piano, e tinha um vestido novo feito sob encomenda a cada baile. Nunca repetia uma roupa.
O filho mais novo nunca gostara de trabalhar. Casou-se, divorciou-se e passou o resto da vida morando com o pai, até que a bebida e o câncer acabaram com ele.
O filho mais velho gostava de dançar, de ouvir música erudita e jazz. Aprendeu a tocar piano sozinho, observando as aulas da irmã. Casou-se ainda menino, dezenove anos apenas. Teve quatro filhos e deixou a família cerca de vinte anos depois. Nunca procurou-os novamente, nem quis sua parte da casa, a grande casa que hoje valeria quase um milhão.  
Anos depois casou-se com outra mulher, que viria a ser minha mãe. Construiu outra grande casa, que nunca chegou a ser totalmente finalizada. Muitas coisas nunca foram finalizadas.
A bela mulher que era minha avó já não existe. Embora consumida pela depressão, foi o câncer que de fato a levou.
Meu pai definha numa cama sob os sintomas devastadores de uma doença degenerativa e incurável. Não ouve mais Tchaikovsky nem George Gershwin.Há anos o piano silenciou. Hoje ele não conseguiria  ao menos sentar-se à frente dele.
Enquanto isso, minha mãe senta-se em sua poltrona, lendo seus livros e fumando um cigarro barato atrás do outro. Usa pérolas nas orelhas e no pescoço. Às vezes escolhe alguns anéis de ouro também.
Sua expressão não denuncia o que se passa dentro dela, mas eu sei: ela lembra da época em que comprava as próprias joias, em que tinha uma coleção de sapatos e uma bolsa para combinar com cada um. Frequentava os melhores bailes da cidade, afinal os anfitriões eram seus parentes ou conhecidos. Viajava em todas as férias.
E hoje ela olha para as rachaduras na parede e as goteiras no teto, e detesta aquela  casa, a grande casa que está se degenerando. Detesta estar ali e detesta o homem doente no quarto. De nada lhe valem as joias, ela não tem mais onde usá-las. Segundo ela, não há mais nenhuma alegria em sua vida. “O cigarro é meu único prazer. Vou fumar até morrer”, ela diz.
            Enquanto isso, seu filho está em uma importante reunião de negócios. Ele só volta pra casa de vez em quanto, traz um vinho caro, passa um tempo de mau humor e logo vai embora.
A filha se senta numa mesa de bar na baixa Augusta, com um copo à frente e um cigarro na mão. Ela imagina como vai custear sua próxima publicação,  como vai pagar o próximo aluguel;  se pergunta porque certas coisas vão tão mal e se sente solitária. Depois resolve afastar esses pensamentos e pedir mais uma bebida. Há muitas vozes em sua cabeça. Claro que essa filha sou eu.
O brilho de outros tempos se apagou aos poucos. Não tenho joias como minha mãe e minha avó tiveram. As únicas coisas douradas que fazem parte da minha vida são as luzes das ruas enquanto caminho de volta do trabalho. O mais próximo de pedras precisosas que possuo são os olhos coloridos dos meus gatos, minhas mais constantes e agradáveis companhias. Os anos dourados se foram, e não há encanto nenhum na decadência que se instalou no lugar deles.
Perdoem a longa divagação. O dia está cinzento e chuvoso, e a chuva refresca a memória. Assim como o sol a iluminaria. De uma maneira ou de outra, no fim tudo são apenas memórias, e raramente conseguimos fugir delas.

quinta-feira, 7 de junho de 2012

Meia dúzia de quadros escuros.

Dias atrás, na casa de minha mãe, parei no alto da escada que leva até meu quarto, de onde posso observar toda a grande sala da casa (inutilmente grande, na verdade. Não se precisa de muito espaço para abrigar uma mulher solitária e um grande vazio), e comecei a reparar nos quadros nas paredes. Meia dúzia de quadros de cores escuras, sombrios, abstratos e incompreensíveis.
Quadros pintados por meu pai.

Repentinamente, me veio à memória a época em que os quadros não somavam meia dúzia, mas várias dúzias. Quadros pendurados pela casa inteira. Quadros empilhados pelos cantos. Quadros debaixo da grande mesa de pintura, atulhada com pincéis e tubos de tinta. Dúzias de quadros.

Meu pai costumava ser um dos artistas a expor suas obras na Praça da República, na feira de artes de domingo. Os estrangeiros costumavam gostar dos quadros dele. E ele costumava se orgulhar disso.
"São todos muito escuros, por isso você não vende mais. Quem colocaria essas coisas mórbidas em casa?", minha mãe costumava dizer. A resposta dele, em essência, era sempre a mesma. "É o meu estilo".

E assim foi durante anos. Quadros escuros por toda a casa, a mesa de pintura no meio da sala, o cheiro de tinta e tíner impregnando o ambiente. As feiras de domingo o mantinham fora durante o dia todo. E na volta, caso tivesse vendido um quadro, ele sempre tinha algo para mim: uma pulseira de pedras negras, uma de pedrinhas coloridas, um brinco que lembrava o adereço de alguma sereia.

Não lembro ao certo quando foi, e até hoje ainda tento entender por que aconteceu. Mas um dia, ele começou a rasgar todas as suas telas. Pegou uma faca e rasgou-as uma a uma; os quadros que estavam debaixo da mesa, os que estavam empilhados pelos cantos, a maioria dos quadros nas paredes. Até mesmo aquele que mostrava um bosque noturno, o único não abstrato, o quadro que ele havia dedicado especialmente para minha mãe. Eu realmente gostava daquele quadro. Gostaria que ele o tivesse poupado.

Poucos quadros sobraram depois desse dia. Apenas a meia dúzia que ainda enfeita as paredes da sala da minha mãe e um que trouxe para minha própria sala. Ele nunca mais pintou. Dizia que não queria mais pintar. Ou será que não podia mais?

Faz anos que isso aconteceu. Mas a memória é mesmo traiçoeira, se esconde, espera estarmos despreparados e então nos dá o bote. E eis que naquele dia, no topo daquela escada em caracol, essa memória me pegou.

E agora, dias depois, me lembro do comentário de minha mãe ao ler meu primeiro conto publicado. "É muito tétrico", disse ela. Não tenho certeza se de fato leu o segundo, e certamente não lerá o terceiro. Seja como for, ela não gostaria de nenhum deles. São todos contos de amor e morte, no fim das contas. E sobre o que mais vale a pena escrever?

É engraçado pensar nisso, mas acho que finalmente entendo os quadros escuros do meu pai. Talvez num futuro distante algum deles se torne a capa para um livro de contos escuros.