domingo, 12 de maio de 2013

São Paulo, Brasil - 24 de maio de 1975


São Paulo, Brasil – 24 de Maio de 1975
Minha querida,
Confesso que surpreende-me ser chamada de “querida” por você, justo você, que me chamava “caríssima” apenas para me provocar, pois eu dizia que o tratamento soava por demais formal e distante. Ainda assim, você bem sabe que eu lhe perdoaria todos os “caríssimas” que dirigisse a mim, apenas pela alegria que me dá finalmente receber notícias suas.
            Não encontro palavras para expressar o alívio que sinto por saber que está bem; na época de seu sumiço, cheguei a pensar no pior. Procurei notícias suas com todos os amigos, mas as informações estavam desencontradas.Ouvi dizer que você tinha ido para o interior usando documentos falsos. Semanas depois me disseram que estava na França, mas sei que você nunca foi boa em francês, e não confiei na informação. Depois de um tempo, uma parte de mim deixou de acreditar que algum dia eu saberia novamente notícias suas – notícias de minha querida.
            Como esquecer o ano de 69? Foi o ano do nosso vendaval. Ainda hoje me lembro de você batendo à minha porta, em desespero, ofegante. Foi arriscado, sim. Mas quem, naquela época, não se arriscou para dar abrigo a um camarada? E você era bem mais que um camarada para mim, e continua sendo. Lembro que também chorei pela Ritinha. Que guerreira, aquela. Morreu como viveu: lutando pelo que acreditava, sem medo de nada. Deveria haver mais Ritinhas no mundo.
            Você citou meu apartamento na 24 de Maio. Ainda hoje, guardo muitas lembranças daquele lugar, boas e ruins. Me lembro das nossas reuniões clandestinas, todos reunidos na minha sala, discutindo política, bolando planos de ação. Lembro que estávamos lá quando o Alê chegou às pressas, dizendo que os militares haviam pego o Marcos. As lembranças permanecem, mas o apartamento não. Deixei-o pouco depois do seu desaparecimento: a movimentação noturna estava começando a levantar suspeitas. Voltei para o apartamento de minha mãe, naquele grande prédio na Avenida Ipiranga, embora passasse pouquíssimo tempo por lá.
            Estou hesitando. Como contar a você tudo o que vivi desde então? Faz pouco mais de um ano que não nos vemos, e nossas vidas estão tão mudadas, mudadas como o tempo costuma mudar aqui em São Paulo, de uma hora pra outra, sem nenhum aviso.
            Nem todas as minhas notícias são boas. Há seis meses, meu pai sucumbiu àquele câncer que o atormentava. Foi uma época difícil pra mamãe e eu. Alugamos a sala onde ele tinha a alfaiataria, na Avenida São João, e agora ali funciona uma loja de artigos finos.
            Quanto à guerrilha, fui obrigada a me afastar. Primeiro, pela minha mãe. Você sabe, ela é professora de estatística na USP, e embora o pessoal de humanas sempre seja mais suspeito para os militares, eu não podia colocá-la em risco, e algumas suspeitas já começavam a surgir em torno da filha dela.
            Também não concluí meu curso de Direito na São Francisco. Sinto falta da universidade. Não só das aulas, mas de andar pelos corredores, tocar nos corrimãos onde tantos personagens importantes da nossa história tocaram antes de mim. Sempre que eu passava pelo busto de Álvares de Azevedo, eu lembrava de você. Sinto falta daquele bar na São Bento, onde costumava beber e conversar com os colegas depois das aulas, onde você ia nos encontrar de vez em quando.
            Sinto falta também do Valtinho. Lembra do Valtinho, aquele de quem eu te falava? Estudava na minha classe. De repente, alguém batia na porta, fazia um sinal e ele saía correndo. Estava sempre sendo perseguido, mas continuava na luta. Ele aparecia nas nossas reuniões de vez em quando: cabelos escuros enrolados, olhos verdes, só um pouco mais alto do que eu. Como posso lhe dizer? Eu me envolvi com o Valtinho, pouco depois da morte do meu pai.
            Entenda, eu estava arrasada: havia acabado de perder meu pai, e a cada dia tinha mais certeza de que perdera também você. Não éramos próximos na época, ainda assim ele me ofereceu todo o conforto de que eu necessitava. Foi meu suporte, meu pilar, minha fonte de forças. Passamos alguns meses juntos. Minha mãe não gostava dele, dizia que era uma companhia perigosa, que eu levantaria ainda mais suspeitas de subversão enquanto estivesse com ele. Mas era o que eu queria, o que eu precisava naquele momento... não dei ouvidos.
            Um dia, o Valtinho sumiu. Ou, mais precisamente, sumiram o Valtinho. Passou-se mais de uma semana sem que ninguém soubesse dele, nem os amigos, nem a família, nem ninguém. Até uma noite quando, segundo uma vizinha, um furgão parou na frente da casa dos pais dele na Móoca e ele foi largado na calçada. Irreconhecivel, Cinzia, ele estava irreconhecível. Parecia uns sete quilos mais magro. Metade dos dentes arrancados, assim como as unhas. O rosto, desfigurado pelos espancamentos. Mas isso tudo não era nada... todas essas feridas poderiam ser tratadas. O mais assustador era a mente dele, Cinzia. Ele perdeu a razão. Completamente. Não nos reconhecia, não sabia onde estava, assustado como uma criança.
            Já tínhamos ouvido falar sobre camaradas que tiveram esse fim, mas eu nunca tinha visto isso acontecer com alguém próximo a mim. Foi um choque. Mais do que um choque. Isso tirou o chão sob os meus pés. Você sabe como eu sou, sempre tão sensível aos acontecimentos e às coisas que me rodeiam. Cheguei a adoecer, não comia, sentia-me constantemente enjoada. Minha mãe me obrigou a ir ao médico. Então, ouvi a notícia que faria com que tivesse forças para me reerguer e seguir em frente: eu estava grávida do Valtinho.
            Você está surpresa? Imagine a surpresa que eu tive. Grávida! Eu, que nunca tive a família como meu maior objetivo de vida! Grávida de um homem que perdeu a razão, que nunca poderá ensinar um menino a empinar pipa, ou uma filhinha a andar de bicicleta. Culpa dos militares. O cenário político atual deixará para sempre uma marca na história deste país, e também em nossas vidas.
Hoje estou no terceiro mês de gravidez. Vendemos o grande apartamento na República, pois estava difícil custear as despesas, ainda mais sem meu pai. Estamos agora na Vila Buarque, num apartamento bem menor, mas que nos serve muito bem. No próximo mês iremos comprar um berço e mais algumas coisas para o bebê. Você sabe como vou chamá-lo, Cinzia? Se for um menino, vou chamá-lo Amadeus, em homenagem a você. Lembro do quanto você ama Mozart. Aliás, ainda chora com a Marcha Fúnebre? Seu disco ficou comigo, mas nunca mais o coloquei na vitrola. Agora que sei que está bem, posso voltar a ouvi-lo.
Sua carta me encheu de novos sonhos e esperanças. São tempos difíceis pelos quais passamos, eu sei. Mas quero acreditar que logo poderemos estar juntas novamente. Imagino que logo você poderá voltar ao Brasil, e então iremos os quatro, eu, você, minha mãe e meu Amadeus (pois tenho certeza de que será um menino) para o interior de Santa Catarina visitar minha avó, e tiraremos outra foto debaixo daquela mesma macieira. Você vai ver como os biscoitos dela são ainda melhores do que os meus, assados no forno à lenha. E vai reparar como realmente não tenho sotaque, embora você sempre diga o contrário. Saí do Sul ainda menina, o sotaque não me acompanhou. Vamos passear pelo sítio, eu, você e Amadeus. Vou ver seu sorriso novamente, esse sorriso de eterna menina. E você poderá me dar aquele beijo, aquele que ficou no ar, interrompido por uma porta bruscamente aberta...
Agora o sono começa a me vencer, embora ainda seja apenas nove horas da noite. A gravidez tem me deixado sonolenta. Espero receber mais cartas suas, minha querida. Cuide-se, e tome cuidado com esse frio. Não vá pegar outra gripe como aquela que teve no inverno de 68, quando fomos acampar na Cantareira e você insistiu que um cobertor apena era o suficiente.
E não se sinta só. Meus pensamentos estão sempre com você, como sempre estiveram. Como sempre estarão.
                                     Com saudade infinita,
Valentina Bauer