sábado, 17 de maio de 2014

A mágica do cotidiano

A mágica do cotidiano existe. Ainda que muitos não acreditem, ela está sempre lá, esperando para acontecer. Como aconteceu num fim de tarde de uma sexta-feira.
Ela passava por aquela esquina todos os dias, voltando do trabalho. Caminhava sempre rápido, não porque tivesse pressa, mas porque o ritmo da música nos fones de ouvido a embalava a seguir acelerada, e a mente inquieta não aceitava outro passo.
Neste dia, havia músicos de rua na esquina. Era comum nas sextas-feiras. Um violinista e um violoncelista, dois violinistas ou um saxofonista. São Paulo é repleta de músicos de rua.
Desta vez, era um violinista já conhecido que tocava, acompanhado por um violoncelo. Mas o violoncelista era um rosto novo para ela. Passou por eles a passos rápidos, como sempre fazia. Talvez não tivesse parado para ouvir a música. Mas então a mágica aconteceu.
Entre todos os rostos na correria da metrópole, ele olhou para o dela. Mais do que isso: ele sorriu. Por um instante, ela continuou seu caminho, mas não foi muito longe. Deu meia volta, tirou um dos fones de ouvido e, por um minuto, parou para ouvir a música. E ele percebeu que ela havia voltado. E mais uma vez sorriu.
Ela poderia ter ficado mais. Poderia ter ouvido a música inteira, ter deixado uma moeda. Mas escolheu sorrir de volta e continuar seu trajeto para casa.
Tinha se apaixonado, e se não tivesse ido embora o encanto acabaria, e ela seria só mais uma expectadora itinerante deixando uma moeda no estojo do instrumento. E para ela, ele seria só mais um músico de rua que a fez parar e tirar umas moedas da carteira.
Ela é do tipo que se apaixona todos os dias: por uma pessoa particularmente charmosa na rua, por uma música que a toque profundamente, por uma flor num galho de árvore no meio do cinza, pelo céu que está especialmente azul. Por um filme que a faz sonhar, por uma obra de arte que a encante, por um gato de rua que permita que ela o acaricie.
Não são paixões feitas para durar. São sentimentos passageiros que vêm para trazer um pouco de beleza para um dia comum. De algumas, ela mal se recorda no dia seguinte, mas mesmo estas não deixam de ser importantes. E a paixão desta sexta-feira é um violoncelista de olhos verdes na esquina da Rua Augusta com a Avenida Paulista.
Provavelmente eles nunca mais se vejam. Provavelmente ele não se lembre do rosto dela até o fim da música. Mas não importa, porque por alguns preciosos instantes, eles se sorriram.
E ele talvez nunca saiba, mas aquele foi o único momento de beleza do dia dela. E o dele foi o único sorriso sincero que ela ganhou e provavelmente ganhará nesse dia.
Ele não sabe, mas ela teve uma semana péssima, caminhando no fio da navalha, suportando cada dia o melhor que conseguia, mas não nesse dia, nesse dia as forças se esgotaram e ela não podia mais ser forte.
Ele não sabe, mas em algum lugar do interior o pai dela está morrendo numa cama, e a mãe se desespera e desconta nela suas frustrações, sua vida infeliz, seus arrependimentos. Em algum lugar da noite, o cara que ela gosta vai se divertir enquanto a deixa chorando em casa sozinha. E a conta bancária dela tem apenas dois dígitos, e o mês está longe de acabar.
Ele nunca vai saber que, assim que atravessou a Paulista, ela não conseguiu mais conter as lágrimas que vinha segurando o dia inteiro, e algumas rolaram discretamente, sem que ninguém percebesse (porque quase ninguém se olha duas vezes nessa cidade). E foi o sorriso que trocaram que libertou aquelas lágrimas. Porque o dia dela foi péssimo, mas o sorriso de um estranho a ajudou a superar. E ela foi correndo para casa, mais apressada do que de costume, pois sentia a necessidade inadiável de contar por escrito o que acabara de acontecer.



29 de março de 2012.