terça-feira, 26 de junho de 2012

O sonho, o dente, o sangue e um texto um tanto sem sentido.

Dentre todas as maneiras de aliviar uma mente inquieta e um coração pesado, sempre acreditei que os sonhos fossem a mais eficiente.
Sonhamos e logo nos encontramos em um outro mundo, num verso onde tudo é possível, onde as mais incríveis fantasias são reais durante as - muitas vezes poucas - horas de sono.
Sonhamos e, por alguns preciosos momentos, os pesadelos da realidade são deixados para trás.
Mas o que acontece quando os sonhos deixam de ser uma fuga saudável de uma rotina cansativa e passam a ser fonte de inquietação e dúvidas? 
Há anos o mesmo sonho me persegue. Muda em detalhes circunstanciais, mas o mote é sempre o mesmo: estou perdendo um dente. E cai naturalmente, sem dor, como se fosse o dente de leite de uma criança. 
Há outra curiosidade a se notar. Até onde vão nossos laços familiares? Meu pai costumava ter o mesmo sonho. Se ainda o tem, acho que não saberei. Há tempos ele perdeu a capacidade de se recordar de certas coisas e ordenar determinados raciocínios. O que nos leva a sonhar com um tema tão peculiar?
Quando acordo do sonho, minha primeira reação é levar a língua a cada um dos meus dentes, certificando-me de que todos estão lá.
E esta noite, além do sonho já familiar, um sonho diferente veio me inquietar.
Eu estava em um local conhecido, grande e mal iluminado. Olhando para a porta, via que lá estava uma pessoa conhecida, apoiando-se no batente, fraca, mal sustentando-se em pé. Sangrava de várias feridas profundas. E eu me sentia... compadecida? Não é uma boa definição. Deixando de lado as descrições objetivas, eu me sentia com o coração partido. Porém, não havia nada que eu pudesse fazer a respeito, ainda que também fosse culpada por algumas daquelas feridas. Então, me limitava a observar.
Acordei no meio da noite, perturbada. A lembrança do sonho estava tão vívida que poderia ter sido real - talvez tenha sido real, em algum lugar. Pensei que, se voltasse a dormir, sonharia novamente com as mesmas coisas.
Assim que adormeci novamente, outro sonho incomum em envolveu. Não exatamente ruim, não necessariamente bom. 
Estranhamente, quando acordei pela manhã e vi o dia claro e sem nuvens, não me sentia mais perturbada pelos sonhos. Estes ainda estavam claros na memória, mas não incomodavam tanto. 
Neste momento, várias horas após o despertar, o que resta é uma doce melancolia.
Melancolia pelo homem que, apesar de ter os mesmos sonhos que eu, está separado de mim por uma barreira construída durante anos de desentendimentos.
Melancolia pela pessoa que sangra sozinha, pela qual eu nada posso fazer.
 Até onde os sonhos não passam de fruto do subconsciente e até onde eles nos servem como mensageiros, nos alertando sobre situações que não somos capazes de compreender à luz do dia?
Será que "tudo o que vejo, sou e suponho é apenas um sonho dentro de um sonho"?


A Dream Within A Dream

Take this kiss upon the brow!
And, in parting from you now,
Thus much let me avow-
You are not wrong, who deem
That my days have been a dream;
Yet if hope has flown away
In a night, or in a day,
In a vision, or in none,
Is it therefore the less gone?
All that we see or seem
Is but a dream within a dream.

I stand amid the roar
Of a surf-tormented shore,
And I hold within my hand
Grains of the golden sand-
How few! yet how they creep
Through my fingers to the deep,
While I weep- while I weep!
O God! can I not grasp
Them with a tighter clasp?
O God! can I not save
One from the pitiless wave?
Is all that we see or seem
But a dream within a dream? 
Edgar Allan Poe

domingo, 24 de junho de 2012

Um dia eu acordei...

... e a escrotidão humana era a nova moda.
Em especial entre o gênero masculino. Mas vejam bem, toda moda tem suas normas. Assim como não se pode fazer uma combinação aleatória de peças de roupa e ser considerado elegante, a escrotidão também tem de ser combinada com atributos específicos para que seja valorizada no conjunto.
E de todos os atributos, aquele que se mescla de maneira mais harmônica com a escrotidão é o cavalheirismo.
Combinar esses dois elementos não é tão difícil, nem requer grandes esforços. Para os garotos que quiserem  se arriscar, seguem aqui algumas preciosas dicas:
1- Nunca levante a voz. Demonstre sua maturidade e educação mantendo sempre o tom baixo e calmo.
2- Escolha sempre os melhores vinhos quando sair com uma mulher, mesmo que sejam muito caros.
3- Nunca faça comentários pouco elogiosos a respeito das pessoas, mesmo que não goste delas.
4- Nunca deixe a mulher pagar a conta, nem ao menos dividir. Um cavalheiro arca com todas as despesas da noite.
5- Conheça a família dela, os presenteie e os leve para jantar.
6- Sempre abra a porta do carro, ande do lado de fora da calçada e tire o chapéu em ambientes fechados.
7- Mande flores.
8- Mostre o seu capital intelectual sempre que puder, afinal cultura é essencial em um cavalheiro.
9- Tente ser sempre educado e demonstre humildade.
10- Trate bem as mulheres.

Caso siga corretamente estes dez passos, um homem certamente será considerado um cavalheiro. Talvez seja um tanto custoso no início, mas tudo na vida requer algum esforço. Para compensar, a escrotidão é muito mais simples de ser alcançada, como veremos a seguir.

1- Ofenda sem erguer a voz. Uma ofensa afeta muito mais quando dita em voz calma e de maneira totalmente intencional e é muito mais humilhante.
2- Deixe claro que ela mesma jamais seria capaz escolher um bom vinho, porque não é suficientemente refinada para isso.
3- Deixe claro que não suporta uma pessoa, mas continue tratando-a como a alguém querido. Hipocrisia é essencial para ser um escroto.
4- Durante uma discussão, sempre a lembre de tudo o que já pagou para ela. Você está pagando, então o mínimo que ela pode fazer é aturar todas as suas falhas.
5- Depois de conhecer a família dela, comente com sua própria família o quanto os achou inapropriados e inferiores.
6- Conte meias verdades, engane e utilize de desculpas não convincentes. Essas coisas certamente serão relevadas caso o passo n° 6 de "como ser um cavalheiro" seja seguido à risca.
7- Mande flores para distraí-la toda vez que a decepcionar. Assim será desculpado e você logo poderá desapontá-la novamente.
8- Use sua intelectualidade para demonstrar o quão superior você é.
9- Seja insuportavelmente arrogante, mas tente disfarçar com uma máscara de humildade. Afinal, humildade  também é sinal de superioridade.
10- Não se importe de partir o coração de uma mulher, desde que faça isso de maneira refinada.

***

Pois bem. Não tive hoje o que se pode chamar de um alegre despertar. Acordei com gritos e ofensas, felizmente não dirigidos a mim, mas que de qualquer maneira me afetaram quase como se fossem. 
Essas coisas me fazem quase querer abandonar crenças sobre as quais contruí as bases do meu caráter e valores que considero essenciais. Me fazem desacreditar que alguns dos meus desejos mais profundos algum dia se realizarão.
Felizmente, ainda há três, apenas três homens em minha vida que fazem com que minha fé na humanidade se mantenha num nível suportável. Três amigos que me fazem crer em espíritos realmente gentis. 
Por um deles, o coração ainda insiste em descompassar, por mais que nunca possa haver nada. A amizade é algo mais sagrado do que qualquer outra coisa, e uma vez instalada, dificilmente se transforma em outro sentimento. 
Os outros dois poderiam ser irmãos mais velhos, uma vez que nunca poderei contar com aqueles que o sangue me deu.
É a isso que ainda me apego, embora não seja o suficiente .Nunca nada é suficiente...

sábado, 23 de junho de 2012

A noite que não deveria ter sido

A noite deveria ter sido reconfortante. Uma companhia conhecida, um cobertor quente, um belo filme. Deveria ser um alívio ao fim de uma semana triste, permeada por angústias, dúvidas, arrependimentos e receios. Uma noite de descanso.
Começou bem. As coisas sempre começam bem. No início, todos são bons, pois é assim que desejam ser vistos.
Mas quando as luzes se apagam, os corpos se aproximam e o desejo ferve, a besta interior sente necessidade de mostrar as garras, exterioriza-se e toma conta da cena.
E então as mãos que deveriam afagar ferem, o desejo se torna pânico e a entrega se transforma em posse.
Se ao menos pudesse haver compreensão entre dois seres...
É difícil escapar. Finalmente, o que resta é mágoa, decepção e algumas leves dores.
Comportamento justificável? Não. Certas coisas podem até ser perdoáveis, mas nunca justificáveis.
E assim, mais uma ferida se abre na alma. Mais uma porta para a insegurança. E a descrença, antiga conhecida, dá mais um passo em direção a uma cidade fantasma interior, até o dia em que encontre ali uma moradia, decore-a com retratos daquele amor perdido e com fragmentos de memórias de dias melhores e decida instalar-se definitivamente.

                                                            Ophelia, Alexandre Cabanel.

quinta-feira, 21 de junho de 2012

Linhagem - Engenheiro Eusèbe Stevaux, o primeiro da família a chegar ao Brasil

 

Família, descendência, hereditariedade e genética. Que coisas curiosas. Não é incrível notar como os membros de uma família podem ser impressionantemente parecidos entre si?
Quando olho para o retrato de Eusèbe Stevaux, o primeiro Stevaux a chegar ao Brasil, ainda no século XIX, tenho a impressão de que estou olhando para o rosto de meu avô, seu descendente direto.
Stevaux têm tudo a mesma cara, minha mãe costuma dizer.
 E não é essa a beleza do parentesco? Quantas pessoas podem traçar sua linhagem até o séc. XIX? Aliás, quem se importa em tentar traçar as linhas, muitas vezes emaranhadas, que guiam até a origem de uma família, descobrir suas histórias?
Minha família é cheia de histórias... como aquela que conta que, misturado ao sangue francês burguês, há um pinguinho de sangue real italiano, ainda que por meios tortuosos.
Mas essa já é outra história, para um outro post.

A história completa de Eusèbe Stevaux pode ser lida neste link, do Arquivo Histórico Municipal.

http://www.arquiamigos.org.br/info/info23/i-estudos.htm


quarta-feira, 20 de junho de 2012

A noite, o silêncio, o quarto escuro e todas as coisas que dali vêm

Há uma noite. Há um quarto. E há um homem.
A noite é silenciosa, o quarto é escuro e o homem é solitário.
Por muitas noites, através de longos anos, ele esteve naquele quarto. E por muitos anos as noites foram silenciosas e solitárias. Com exceção de algumas.
Em algumas noites particularmente silenciosas, quando a solidão é demasiado grande e o quarto está especialmente escuro, ele grita.
Grita palavras desconexas e os nomes das pessoas que ama. Geme e ruge.
E grita por socorro.
Qual o motivo para que grite por socorro? A cama está quente, ele está bem alimentado e fisicamente seguro. Nenhum mal pode acontecer a ele.
Nenhum mal, senão aqueles que remói dentro de si mesmo: as lembranças de todos os erros que cometeu durante uma longa vida, os rancores acumulados durante os anos, a solidão que atraiu para si, as memórias de todos aqueles que abandonou. Males que intensificam a escuridão do quarto.
Então, ele grita. Algumas pessoas o escutam, inclusive eu.
Alguém vai até ele. Ordena que se cale. Grita ainda mais alto, e esses gritos são ofensas e ameaças. Bate a porta estrondosamente.
Esse alguém não entendeu o motivo dos gritos, mas eu entendo. O homem no quarto quer ser ouvido. Quer saber que ainda possui uma influência no mundo; quer ter certeza de que ainda tem uma voz e que alguém ainda se incomoda ou se importa com ele. Quer saber que está vivo.
Entretanto, apenas observo; escuto os gritos, mas não os atendo. Sinto-me impotente.
Entre tantas coisas que eu poderia desejar, desejo que pudesse fazer alguma diferença nesse cenário. Talvez eu faça, mas não o suficiente.
Assim, o que me resta é oferecer a certeza de que, por mais que o quarto esteja escuro durante a noite, em alguma manhã estarei na porta com meu sorriso melancólico (porém sincero) e, embora eu não diga nada, ele vai saber o que quero dizer: Não precisa gritar, estou te ouvindo muito bem.

terça-feira, 19 de junho de 2012

Blasélandia

Superficialidade, hipocrisia e falsidade mascaradas sob belas palavras e gestos delicados, utilizados com distinta arrogância e ares de superioridade para esconder um imensurável complexo de inferioridade.
Assim é o povo da Blasélandia.

sexta-feira, 8 de junho de 2012

Décadence sans elegance



Acordar cedo em dias frios e chuvosos deveria ser proibido por lei. A pessoa acorda com o despertador tocando, vira-se na cama e volta a dormir. Levanta-se atrasada para o trabalho e, chegando lá (molhada e com frio), vê-se sozinha em uma sala, a observar a chuva pela porta aberta.
Vai ser um dia parado, então o que resta é escrever. A cena ficaria mais completa com uma caneca de café ao lado. Mas eu não bebo café.
Na tentativa de escrever, me voltam à mente as coisas nas quais tenho pensado nos últimos dias. E recentemente tenho pensado na decadência. Bem, não exatamente na decadência em si, mas em como parece ter se tornado um estranho e recorrente hábito as pessoas se esforçarem para parecerem elegantemente decadentes. Decadence avec elegance? Não vejo beleza, nem graça, nem atrativo nenhum nisso, honestamente.
Talvez pelo fato de que eu mesma não precise forçar decadência nenhuma. Observo essa decadência na minha família há anos, e não tenho nenhum apreço especial por ela.
Vejo o que somos hoje, em comparação com as histórias que contam sobre o que fomos um dia. E o cenário atual me parece por demais melancólico.
Lembro do quadro para o qual olhei por mais tempo quando visitei a Pinacoteca do Estado. Estava na sala de retratos masculinos, e na legenda lia-se Eusébe Stevaux. O primeiro da família a chegar no Brasil, um engenheiro francês que deixou algumas obras por São Paulo, um viaduto com seu nome e um retrato num lugar importante, que viria a ser o orgulho da família. Ninguém mais vai até lá para ver o retrato, entretanto.
Mentalmente, abro o guarda-roupas e encontro o casaco de pele de coelho que pertenceu a minha avó paterna. A pele é verdadeira, impressionantemente macia e bem conservada apesar de ter pelo menos setenta anos de idade. Quanto deveria valer uma peça dessas nos anos quarenta? Não pouco, certamente.
Penso na mulher que a vestia. Que bela mulher ela era, sempre de saltos altos, esmalte e batom vermelhos, o cabelo impecável. E não usava bijuterias. Brincos, pulseiras, colares, tudo era de ouro verdadeiro. Até um relógio inteiro de ouro. Lembro do rosto dela num retrato antigo. Era realmente linda, e penso que gostaria de me parecer mais com ela.
Não lhe era permitido trabalhar, mas financeiramente não havia necessidade; o marido lhe dava tudo o que quisesse, assim como o dava aos três filhos.
 A única menina fazia aulas de piano, e tinha um vestido novo feito sob encomenda a cada baile. Nunca repetia uma roupa.
O filho mais novo nunca gostara de trabalhar. Casou-se, divorciou-se e passou o resto da vida morando com o pai, até que a bebida e o câncer acabaram com ele.
O filho mais velho gostava de dançar, de ouvir música erudita e jazz. Aprendeu a tocar piano sozinho, observando as aulas da irmã. Casou-se ainda menino, dezenove anos apenas. Teve quatro filhos e deixou a família cerca de vinte anos depois. Nunca procurou-os novamente, nem quis sua parte da casa, a grande casa que hoje valeria quase um milhão.  
Anos depois casou-se com outra mulher, que viria a ser minha mãe. Construiu outra grande casa, que nunca chegou a ser totalmente finalizada. Muitas coisas nunca foram finalizadas.
A bela mulher que era minha avó já não existe. Embora consumida pela depressão, foi o câncer que de fato a levou.
Meu pai definha numa cama sob os sintomas devastadores de uma doença degenerativa e incurável. Não ouve mais Tchaikovsky nem George Gershwin.Há anos o piano silenciou. Hoje ele não conseguiria  ao menos sentar-se à frente dele.
Enquanto isso, minha mãe senta-se em sua poltrona, lendo seus livros e fumando um cigarro barato atrás do outro. Usa pérolas nas orelhas e no pescoço. Às vezes escolhe alguns anéis de ouro também.
Sua expressão não denuncia o que se passa dentro dela, mas eu sei: ela lembra da época em que comprava as próprias joias, em que tinha uma coleção de sapatos e uma bolsa para combinar com cada um. Frequentava os melhores bailes da cidade, afinal os anfitriões eram seus parentes ou conhecidos. Viajava em todas as férias.
E hoje ela olha para as rachaduras na parede e as goteiras no teto, e detesta aquela  casa, a grande casa que está se degenerando. Detesta estar ali e detesta o homem doente no quarto. De nada lhe valem as joias, ela não tem mais onde usá-las. Segundo ela, não há mais nenhuma alegria em sua vida. “O cigarro é meu único prazer. Vou fumar até morrer”, ela diz.
            Enquanto isso, seu filho está em uma importante reunião de negócios. Ele só volta pra casa de vez em quanto, traz um vinho caro, passa um tempo de mau humor e logo vai embora.
A filha se senta numa mesa de bar na baixa Augusta, com um copo à frente e um cigarro na mão. Ela imagina como vai custear sua próxima publicação,  como vai pagar o próximo aluguel;  se pergunta porque certas coisas vão tão mal e se sente solitária. Depois resolve afastar esses pensamentos e pedir mais uma bebida. Há muitas vozes em sua cabeça. Claro que essa filha sou eu.
O brilho de outros tempos se apagou aos poucos. Não tenho joias como minha mãe e minha avó tiveram. As únicas coisas douradas que fazem parte da minha vida são as luzes das ruas enquanto caminho de volta do trabalho. O mais próximo de pedras precisosas que possuo são os olhos coloridos dos meus gatos, minhas mais constantes e agradáveis companhias. Os anos dourados se foram, e não há encanto nenhum na decadência que se instalou no lugar deles.
Perdoem a longa divagação. O dia está cinzento e chuvoso, e a chuva refresca a memória. Assim como o sol a iluminaria. De uma maneira ou de outra, no fim tudo são apenas memórias, e raramente conseguimos fugir delas.

quinta-feira, 7 de junho de 2012

Meia dúzia de quadros escuros.

Dias atrás, na casa de minha mãe, parei no alto da escada que leva até meu quarto, de onde posso observar toda a grande sala da casa (inutilmente grande, na verdade. Não se precisa de muito espaço para abrigar uma mulher solitária e um grande vazio), e comecei a reparar nos quadros nas paredes. Meia dúzia de quadros de cores escuras, sombrios, abstratos e incompreensíveis.
Quadros pintados por meu pai.

Repentinamente, me veio à memória a época em que os quadros não somavam meia dúzia, mas várias dúzias. Quadros pendurados pela casa inteira. Quadros empilhados pelos cantos. Quadros debaixo da grande mesa de pintura, atulhada com pincéis e tubos de tinta. Dúzias de quadros.

Meu pai costumava ser um dos artistas a expor suas obras na Praça da República, na feira de artes de domingo. Os estrangeiros costumavam gostar dos quadros dele. E ele costumava se orgulhar disso.
"São todos muito escuros, por isso você não vende mais. Quem colocaria essas coisas mórbidas em casa?", minha mãe costumava dizer. A resposta dele, em essência, era sempre a mesma. "É o meu estilo".

E assim foi durante anos. Quadros escuros por toda a casa, a mesa de pintura no meio da sala, o cheiro de tinta e tíner impregnando o ambiente. As feiras de domingo o mantinham fora durante o dia todo. E na volta, caso tivesse vendido um quadro, ele sempre tinha algo para mim: uma pulseira de pedras negras, uma de pedrinhas coloridas, um brinco que lembrava o adereço de alguma sereia.

Não lembro ao certo quando foi, e até hoje ainda tento entender por que aconteceu. Mas um dia, ele começou a rasgar todas as suas telas. Pegou uma faca e rasgou-as uma a uma; os quadros que estavam debaixo da mesa, os que estavam empilhados pelos cantos, a maioria dos quadros nas paredes. Até mesmo aquele que mostrava um bosque noturno, o único não abstrato, o quadro que ele havia dedicado especialmente para minha mãe. Eu realmente gostava daquele quadro. Gostaria que ele o tivesse poupado.

Poucos quadros sobraram depois desse dia. Apenas a meia dúzia que ainda enfeita as paredes da sala da minha mãe e um que trouxe para minha própria sala. Ele nunca mais pintou. Dizia que não queria mais pintar. Ou será que não podia mais?

Faz anos que isso aconteceu. Mas a memória é mesmo traiçoeira, se esconde, espera estarmos despreparados e então nos dá o bote. E eis que naquele dia, no topo daquela escada em caracol, essa memória me pegou.

E agora, dias depois, me lembro do comentário de minha mãe ao ler meu primeiro conto publicado. "É muito tétrico", disse ela. Não tenho certeza se de fato leu o segundo, e certamente não lerá o terceiro. Seja como for, ela não gostaria de nenhum deles. São todos contos de amor e morte, no fim das contas. E sobre o que mais vale a pena escrever?

É engraçado pensar nisso, mas acho que finalmente entendo os quadros escuros do meu pai. Talvez num futuro distante algum deles se torne a capa para um livro de contos escuros.