quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Fresas argentinas

O beijo dele tinha gosto de morangos argentinos. Ele sequer comera morangos, mas podia-se sentir o sabor: doce e vermelho, levemente amaro. Amar o. Amá-lo.
Ela não relacionava o paladar às balas de alcaçuz que havia comprado para ele. Não estava mais na noite fria de São Paulo. Havia sido transportada para uma manhã de sol na Recoleta. Mães levavam suas crianças pelas mãos a caminho da escola. Idosos faziam fila na frutería de esquina.
A frutería… o aroma fresco dos morangos. Os maiores, mais vermelhos e tenros morangos que já provara.
Passara meses sonhando com aqueles morangos, e agora era como poder degustá-los mais uma vez.
Algum dia saborearia os morangos argentinos novamente, naquela mesma frutería na Recoleta. Ao lado dele.


segunda-feira, 20 de outubro de 2014

O intolerável era: ela era escritora.
Pouco importavam os olhos claros, os cabelos longos, a educação privilegiada, os certificados dos cursos de francês, violino, canto, dança, teatro.
O inferno era o fato dela ser escritora. De poder citar Poe e Guimarães Rosa e Vinícius e Camões e Gonçalves Dias.
Ela não precisava buscar no Google para saber quem seria Manoel de Barros.
E era uma devassa, claro. Todos os escritores são. A própria história da Literatura confirma isso. As perversões de Sade. Os escândalos de Oscar Wilde. A licenciosidade de Rimbaud e Verlaine. Charles Dickens, então, santo Cristo: um potencial para escandalizar toda a Inglaterra vitoriana.
Havia ainda a relação desajustada dos Fitzgerald. “A geração perdida”. O que esperar de gente com essa alcunha? E o maldito Bukowski, inspiração degenerada de milhares de jovens incautos. Um dos favoritos dela.
Não se podia confiar em uma escritora que admirava Simone de Beauvoir. Sua relação com Sartre sequer devia ser chamada de casamento. Qualquer mulher de bem sabia disso. E sabia também manter distância segura de Anaïs Nin e sua escrita pornográfica. Até o nome da cretina era pornográfico, que vexame.
Escritores são depravados. Poetas ainda mais. Castro Alves e suas muitas amantes, por exemplo. E Edgar Allan, poeta de muitas musas. Crápulas.
Todos os vícios podem ser encontrados nos escritores. Basta ler algumas páginas de Baudelaire para saber disso.
Mas os mais abomináveis e sórdidos vícios, aqueles que realmente ameaçavam a sociedade, não eram os “Paraísos Artificiais”. Eram, antes, o dom da dialética, a cultura, a paixão, a avidez pelo saber, a análise crítica. E o pior de tudo: a liberdade de pensamento. Para onde iriam os bons costumes desse jeito?

Que Deus nos livrasse dos escritores.

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

Tenho um suéter cinza que era do meu pai. Na verdade, foi uma das últimas peças de roupa que ele ganhou, antes que a ferida nas suas costas deixasse os ossos quase expostos e vesti-lo parecesse um ato mais cruel do que amoroso. Nos seus últimos dias de vida, o aquecíamos apenas com cobertas.
Uso o suéter em casa sempre que esfria um pouco. Fiz dele meu pijama favorito. Poderia usar outros agasalhos, mas não me aqueceriam da mesma forma. Vago pela casa com o suéter masculino, grande demais para mim, já um tanto molambento.
Não preciso de mais nada, preciso? Uma multidão de lembranças me faz companhia. Meus fantasmas me consolam, me enxugam as lágrimas.
Tenho meu suéter cinza e meus comprimidos - durmo meu sono sintético no abraço da saudade.

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

“Então você vai voltar pra casa hoje, colocar a gata no seu colo e ficar triste, é isso?”
Era exatamente isso, na verdade.
Jantar duas cervejas, voltar para casa cantarolando “tell me why I don’t like mondays...”.
Aguardar a tempestade que não pede licença.
“Transe primeiro, fale de poesia depois.”
“Deixe de ser tão poética, seja mais direta.”
“Stranger in the night, a lonely person I was a stranger in the night...” Não, não era isso. Mas não importava.
Em sua bolha em preto e branco, nem o acaso penetrava.





segunda-feira, 25 de agosto de 2014

"Gosto de te ver ao sol, leãozinho"

Algum dia vou escrever pra você.”
“Não, não vai.”
Foi isso o que dissemos naquela segunda vez que dormimos juntos, na casa daqueles amigos, altas horas da madrugada. Mas eu sou a escritora rebelde, minha palavra é desobediente: escrevo agora como a criança que bate o pé. “Você não manda em mim.” Orgulho de virginiana.
Não que você não fosse gostar que eu te escrevesse. Pelo contrário, desde aquela época eu sei que você gostaria, de verdade, mas ficaria sem graça, logo você, o Senhor Sem Vergonha, o Pau pra Fora.
Mais tarde, você me disse que não sabia lidar com demonstrações de carinho, o que, veja bem, é uma grande ironia: troco meu coração por um cookie, mas cookies são doces. Renego o romantismo, mas não deixo de ser carinhosa. Você era um puto, mas um puto de alma lúdica e coração de ouro.
E assim passamos as semanas: eu, que não queria ninguém por perto, esperando uma mensagem, qualquer gracinha sua; você, sempre durão, fazendo pequenas amabilidades.
Você chegou no meu momento solitário, quando sentia-me dura e indesejável, e mudou tudo isso.
“Você me fez acreditar. E ver que, às vezes, mulheres são turronas, mas são fofas e gentis”, foram as suas palavras.
Agora só desejo que você seja estupidamente feliz, ronronando num colo mais amoroso que o meu, recebendo um sorriso mais leve. Que dure o tempo que tiver de durar. “Que seja doce.”
Desculpa, sei que te deixei sem graça de novo. Não fiz por mal. É que eu “gosto tanto de você, leãozinho”.



sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Às vezes acho que, se eu não te conhecesse, pensaria que você é uma personagem de alguma série, filme ou algo assim. Quer dizer, essa coisa de você escrever, ser solteira aos quase trinta, viver com vários gatos, colecionar bonecas e andar de calcinha e camiseta pela casa. Tem corpo de femme fatale e fígado de pedreiro. É caricato demais, sabe. Quase não convence.
− Tudo bem, me deixa analisar. Sou tão autêntica que pareço irreal, é isso? Sendo assim, para todos os efeitos, aquelas mulheres passeando nos shoppings com unhas de porcelana eternamente vermelhas, cabelos perfeitamente escovados e todos os problemas da vida escondidos atrás de camadas de maquiagem são a coisa real? Vi um exemplar esses dias na sorveteria, estava reclamando que está solteira. Talvez pareça uma ótima moça, mas seja superficial, entediante ou histérica.
− Ou paranoica.
− Paranoica sou eu, mas pelo menos não sou histérica, seria muito pior. A parte ruim de ser paranoica é que...
− ... você é paranoica.
− Olha, se você vai ficar completando minhas falas, a conversa acaba por aqui. O que eu queria dizer é que histérica é a pior coisa que uma mulher pode ser.
− Não, o pior é ser poeta.
− Não entendo como ser poeta pode ser ruim para alguém além dela mesma.
− Uma poeta pode acabar com a vida de um cara, mandá-lo pra debaixo da ponte existencial. Ela irá te imortalizar nos versos, pro bem ou pro mal. Mais provavelmente para o mal, porque nada inspira tanto quanto relação que acaba em merda. Basta uma Trova ao Mau Amante, uma Ode à Paumolescência, e pronto, não há terapia que recupere o cidadão.
− Sério? Pensei que o que acabasse com um homem fossem os intermináveis almoços de domingo em família, a hipoteca, a prestação da mini van, o joanete causado pelo sapato social, a novela das nove, o sexo morno com hora marcada, as confraternizações de fim de ano da empresa.
− Isso também, mas o efeito é homeopático. O cara agoniza por anos. Com a poesia é diferente: uma leitura de poucos minutos e já era, o serviço está feito.


domingo, 29 de junho de 2014



 Não escrevo hoje com pretensão literária alguma. Este texto, na verdade, possui uma única e simples função: dizer-te o quanto você é um babaca.
Doeu? Então respira fundo e relaxa, porque vai doer mais. Espero que doa tanto quanto doeu em mim quando você me fez de trouxa. Eu sei, falei que não estava com raiva e tal. Mas sentimentos são mutáveis, ainda mais nessas situações. 
Partirei do pressuposto de que você nem faz ideia do que eu estou falando. Portanto, comecemos com uma citação clichê, dessas que toda miss usa uma vez na vida (mesmo porque foi isso que você se tornou na minha história: um cara clichê, com atitudes clichês).
"Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas." Meigo, né? Já deve ter estampado milhões de capas de cadernos, agendas, camisetas e alguns daqueles adesivos cafonas que as pessoas colam nos carros. E mesmo assim, a humanidade caga para o significado dessa oração.
Para não me demorar neste assunto, resumirei minha humilde interpretação: se você se aproxima de uma pessoa com a intenção de forjar qualquer tipo de vínculo saudável, a sua obrigação é, no mínimo, não cagar na vida dela. 
Não parece muito difícil, né? Mas é. 
É difícil lidar com seus problemas pessoais e não envolver outras pessoas nos seus assuntos mal resolvidos. Mais difícil ainda é pensar com a cabeça de cima quando tem uma ruiva semi bêbada ao seu lado no sofá, toda confiante. 
É tão difícil que você não se lembra de que, teoricamente, não tinha segundas intenções ao entrar no apartamento de uma mulher solteira que mora sozinha. Nem se lembra de que em algum lugar do mundo existe uma pessoa que você chama de namorada, mesmo que, aparentemente, ninguém saiba dessa relação (se é que ela existe).
Então é isso aí, sua consciência se nubla e repentinamente você é só um macho tentando pegar uma fêmea. Essa parte eu até que me esforço pra compreender. Hormônios, instinto etc. Um par de peitos na sua frente e foda-se a razão. Como você mesmo disse, você abraça a causa. Abraça, beija, aperta, apalpa e dorme abraçadinho, na verdade. 
O problema é que a causa não vira uma pizza no dia seguinte, né campeão? A causa levanta e vai trabalhar achando que teve uma noite legal, que talvez se torne um lance bacana. Até releva o fato de você não ter as mãos mais habilidosas do mundo, afinal essas coisas podem ser ensinadas.
É aí que bate o desespero, né? No dia seguinte a vida continua, mas a noite passada não será apagada da história, então é melhor marcar aquele encontro como quem não quer nada, preparar a expressão clássica de arrependimento e assumir de vez que fez cagada. Em seguida você some, espera algum contato e depois usa a oportunidade para se vitimizar um pouco, afinal está sofrendo tanto com a situação na qual você mesmo se colocou. 
Acontece que ninguém vai passar a mão na sua cabeça e te chamar de bom garoto por ter reconhecido o erro: isso era o mínimo que qualquer ser humano vagamente decente deveria fazer. Em vez disso, serão cobradas algumas respostas que possam redimir seu caráter, ao menos em partes. 
Putz, respostas? Ai, que preguiça. Você não deve satisfações a ninguém. Nem à sua namorada, nem à outra pessoa que você envolveu nisso.
Mas, por um lado, tá tudo certinho né? Você vai se retirar por um tempo, se remoer de remorso e depois agir como se nada tivesse acontecido. Então vai ficar tudo bem, não vai?
Não, não vai. 
Não vai porque, graças a uma mancada sua, graças a uma tentação à qual você (diz que) não conseguiu resistir, existe uma pessoa que já possuía sérios problemas de confiança e agora acredita que não confiará em mais ninguém até a próxima encarnação. Existe outra pessoa que foi traída e talvez ainda nem desconfie disso. 
E quanto a você, amigão? Sinto dizer, mas você entrou para as estatísticas: toda vez que se deparar com uma matéria dizendo que quase metade dos homens já traiu uma parceira, lembrará que pertence a esse grupo. 
Pior: imaginará a quantidade de meninas ingênuas e românticas que têm seus corações partidos toda vez que leem uma pesquisa dessas, passando cada vez mais a acreditar que "homem não presta mesmo" e que romantismo é utopia. 
Agora eu sou o dedo na sua ferida, certo? Ótimo. Você reabriu todas as feridas na minha confiança, então acho justo. 
Quem sabe da próxima vez você assuma logo que só quer alguém por uma noite, sem precisar de demonstrações de afeto para ganhar a confiança da pessoa e de desculpas no dia seguinte. Talvez você considere que aquele ser tão bom de apalpar tenha um coração debaixo da carne macia, e que eventualmente esse coração tenha sentimentos. Ou quem sabe você varra essa história toda pra baixo do tapete e siga a vida como se nada tivesse acontecido.